sábado, dezembro 30, 2006

a confirmação de ontem

Tenho cá comigo a impressão de que Recife mofou.

quinta-feira, dezembro 21, 2006

catarses coletivas, singelas cortesias globais

Em um certo dia, há pouco mais de dois anos, quem passasse pela estreita Rua do Lazer - lugar que agrega diversos estandes e barracas de alimentação e amplamente freqüentado pelos universitários que circulam pelos prédios e instalações da Universidade Católica de Pernambuco - testemunharia um inusitado evento certamente vivenciado em diversas outras partes da cidade e do país, tanto nos espaços públicos quanto no aconchego de milhões de lares brasileiros. Um público eufórico e radiante, digno dos grandes espetáculos desportivos de Copa do Mundo, se acotovelava, aglomerado, em frente aos televisores dos pequenos estabelecimentos dispostos pela rua, assistindo ao que seria o mais recente mega-acontecimento da grande mídia brasileira: um acerto de contas regado a muita porrada entre ninguém menos que Laura e Maria Clara, personagens arquetípicas (ou seriam estereotípicas?) que ocupavam os postos de “vilã” e “mocinha” na pedante novela Celebridade.

Aos gritos, urros e outras interjeições de euforia e espanto, os passantes disputavam, ávidos, cada centímetro quadrado em frente aos aparelhos, diante dos quais apenas vez por outra olhavam para os lados, mas sempre sorrindo, fazendo comentários, vibrando, quiçá desfiando apostas e palpites. Em uma experiência estranhamente coletiva, por meio da qual compartilhavam problematicamente seus desejos de superioridade e suas noções moralistas do bem e do mal, os presentes explicitavam seus códigos duvidosos de justiça em uma diferente roupagem, amparada em uma nova versão das convenções maniqueístas das narrativas nacionais, dessa vez assumindo alegremente a convicção de que os bonzinhos tinham mesmo era que sentar a porrada nas maléficas criaturas vilãs que habitam o caricatural reino do Projac.

Muito distante do ultrapassado conceito da mocinha ingênua e desafortunada que sofre quieta até o fim, a protagonista pop, fashion e umbiguista Maria Clara Diniz - do alto do poder já sugerido pelo seu ostensivo duplo-nome-próprio-e-sobrenome - mostra as suas garras e, para delírio do público, parte para o inusitado acerto de contas – por algum motivo obscuro do qual não cheguei a tomar conhecimento. Nesse encontro meticulosamente arquitetado pelos operários-padrão do mundo fantástico da Rede Globo – estes que, juntos, ajudam a incutir no imaginário popular a noção de um cotidiano delirante regado a praias, Leblon, pequenos luxos, grandes intrigas e uma inacreditavelmente pequena dose de trabalho e responsabilidade – não havia espaço para defesa, tampouco para uma disputa equilibrada: a atitude revanchista e descaradamente moralista de punir a diabólica personagem de Cláudia Abreu implicava na imobilização do alvo, na sucessão vertiginosa de golpes e, por fim, na demonstração ostensiva de poder que se caracterizaria como clímax da catarse coletiva, na qual nos é apresentada a imagem da cambaleante e surrada vilã, realçada com todas as cores fortes que uma violência selvagem e punitiva desenha no rosto de suas vítimas. Cláudia Abreu, de olho roxo e boca rasgada, sai de cena com a sensação de mais um dia cumprido.

Como no universo de valores e sentidos mercadologicamente legitimados tudo o que dá certo é reproduzido à exaustão, o pega-pra-capar novelístico que bateu recordes de audiência deu origem a um sem-número de acertos de contas produzidos em série e cada vez mais alimentados pela máquina auto-referente de programas televisivos, noticiários e impressos da indústria do fútil, tão próspera em nossas terras. Esta semana, eu estava no trânsito quando o rádio noticiou mais uma sessão de espancamento em horário nobre, cortesia do mestre dos barracos globais Manoel Carlos. Em breve, o locutor dizia, o mosca-morta Alex iria esbofetear a desumana – no sentido mais ridículo do termo – personagem de Lília Cabral. Assim, o momento-porrada que foi sempre ansiosamente aguardado e desfrutado por boa parte do público global se transformou em elemento obrigatório das novelas, repetido ad infinitum a cada nova produção. Nada disso chega a ser novo, de fato: a baixaria e a valorização do olho por olho são lugares-comuns em certos discursos midiáticos. A novidade é que, dado o seu grau de eficácia, a coisa se alastrou por todos os núcleos das novelas, de modo que até mesmo os coadjuvantes agora têm direito ao seu merecido duelo.

Cabem aqui duas questões. Em primeiro lugar, nos resta saber até quando os espectadores irão ver alguma graça nestes momentos-catarse em que empregados ofendidos, populações massacradas, cornos indignados e outros seres com motivos para revolta se sentirão verdadeiramente vingados ao testemunhar a “surra aos malvados” encenada em seus televisores. A segunda pergunta, mais sombria: o que virá depois, para saciar este senso de justiça que leva o acerto de contas para a esfera do privado e alimenta discursos fundamentalistas sobre bons e maus, definindo o tratamento destinado a estes últimos por cada indivíduo, em seu moralismo duvidoso que conecta justiça e desforra?

A lógica da repetição, fundamentada na reprodução das fórmulas de sucesso e potencializada pelas políticas de baixo risco que permeiam as tentativas no mercado televisivo de agradar ao seu público consumidor, transformam os eventos espetacularizados do horário nobre em uma sucessão de clichês fabricados e “grandes acontecimentos” redundantes. Estes continuam a render até que, por sua própria obviedade e natureza descartável, acabam por cansar até o mais passivo dos espectadores, sempre sedento por novas remessas de catarses coletivas. É assim que a fábrica global de compensações cria, recria e veicula suas fórmulas exaustivas - e, não raras vezes, sexistas -, desafiando a indulgente cumplicidade de seus fiéis interlocutores e transformando tudo em mercadorias de emoção barata: até uma “boa” surra.

domingo, dezembro 03, 2006

enquanto isso

“- Meu Deus, por que me abandonaste?
- Porque eu não existo."

quinta-feira, novembro 23, 2006

a-histórico

Recife ingressou em um tempo parado. Não sei há quanto tempo foi isso, e nem poderia saber, afinal, o tempo parou e, desde então, não se conta mais. Como pequena cápsula hermeticamente fechada, o apartamento onde vivo, no entanto, sofre descompassadamente a falta daquilo que chamam de “condições normais de temperatura e pressão”. O calor aqui é insuportável e os ouvidos, enganados, por vezes estalam reclamando uma altitude inexistente. Mas o tempo aqui não chega: está tudo suspenso. Aqui não há história, o telejornal é capricho e ficção, e não é que este dia seja igual a ontem: é que ele não parece dia, parece coisa que não se conta.
Olho pro aparelho de som e penso em escutar algo, mas não coloco nada. Poderia ser a velha indecisão de não saber o que ouvir, mas não: é falta de vontade mesmo. E aí me ocorreu essa associação engraçada: estou sem paciência para música, que é a arte temporal por definição. Seria coincidência ou eu realmente estou confortável e acomodado, circunscrito em um espaço sem sucessão de horas? E o espaço sem tempo, é o quê?
Tenho visto muitos filmes, mas isso é diferente: o filme é um instante irreal, meio passado, meio futuro, talvez imaginado, mas nunca um tempo concreto, histórico e vivo. É como uma amostra de fatos e instantes, que se pode viver, ainda que não vivendo, e que é feito de experiências que, não raro, podemos guardar pra mais tarde - para quando o relógio voltar a andar.
A parede da cápsula, voltada para o poente, emana um ar quente e doentio à tarde que molha as roupas e inviabiliza toda e qualquer tentativa de pensamento, refrescado apenas no artificialismo heróico da geladeira. Penso que nesses dias os recifenses ficam perambulando, enfraquecidos e fatigados pelo calor, até o momento em que se amontoam em camas impossíveis implorando vapores quentes dispersados pelo ventilador. Nesses dias a gente até se sente mesmo como o escritor daquele filme cubano: tropical e subdesenvolvido. Lembrei da afirmação dele, quando diz que se sente já velho e podre, e que deve ser porque tudo amadurece e apodrece muito rápido nos trópicos. Viver por estas bandas às vezes parece mesmo impossível, perecível. A cidade está realmente um inferno.



sábado, novembro 04, 2006

uma de menos

"o que importa, na verdade, é este instante entre tudo o que já foi e o que ainda será".

sábado, outubro 21, 2006

dois mundos

"No porão da minha cabeça dois gigantes se enfrentavam: de um lado, o gelo da covardia burguesa; do outro, na parte oposta do eu, cozinhava-se uma idéia herética.
No combate entre essas duas forças pendulava eu, horrorizado."

Tom Zé, Tropicalista lenta luta

quinta-feira, outubro 05, 2006

dos males, o primeiro que apareceu

Nada melhor para alguém meio idiota do que um idiota completo.

Ou pior - não decidi ainda.

segunda-feira, setembro 18, 2006

lucrecia

Fiquei mesmo tentando entender...
E estas tantas pessoas – inúmeras - que se encontram a ponto de explodir e, na maioria das vezes, "apenas implodem"?

O que explica...?

domingo, setembro 17, 2006

sexta-feira, setembro 15, 2006

quinta-feira, setembro 14, 2006

os afetos anônimos

Dentre as figuras exóticas que perambulam por aí, há os pertencentes a uma espécie de seita da qual fazem parte estes inusitados seguidores das pequenas sutilezas absurdas cotidianas: os paqueradores anônimos. Muito fora da esperança da retribuição, muito antes da possibilidade de um descobrir e um acontecer, o que existe é sobretudo o querer - e o imaginar. Estes seres dementes e evidentemente perturbados regozijam-se em considerar o ser humano como um complexo existir cheio de nuances, vontades, contradições e subjetividade - um mundo enlouquecedor de tão incoerente, dúbio e significativo - mas que ao mesmo tempo se revelaria ordinário e cruel em sua ação. Daí a plena certeza de que só o inconcluso e o não-revelado os resguarda dos malefícios de uma vida a dois, a três, a duzentos - enfim, da extrema habilidade humana e sua eficácia em esmagar sutilezas sensíveis.
Neste universo de fantasia e desespero, tudo que diz respeito ao outro-em-questão está absolutamente endereçado ao paquerador anônimo: os olhares são para ele, o corpo está levemente inclinado em sua direção, o braço, sutilmente afastado para liberar caminho e convidar à aproximação, o sorriso é permissivo e a conversa tem o único propósito de evidenciar a cumplicidade transcendental de repente descoberta e cheia de promessas. Todos os signos estão postos e devidamente interpretados de modo que o paquerador-esquizofrênico possa jurar, de pés juntos, que há alguma coisa de muito, muito, muito suspeita nas atitudes do outro, embora nada o demova da igual certeza na qual está desde sempre imerso de que um único gesto de proatividade sua seria suficiente para deixá-lo exposto ao equívoco, em uma situação na qual todas as evidências imediatamente se desvaneçam e o deixem a nu, doido, equivocado e acossado pelo "não-era-nada-disso".
Daí essa intrínseca contradição. Daí porque a paquera - cuja única função a priori não seria outra senão evidenciar interesses, abrir caminhos e convidar a possibilidades - nesta nova e quase inconcebível modalidade seja anônima, tenha como objeto final unicamente a viagem egóica da fantasia individual não-revelada, viagem esta que se realiza no sobressalto sensível de falsamente sentir-se descoberto - mesmo sem nunca se mostrar -, na vontade embaladora do encontro "casual", na espera e na ansiedade fadadas a apenas se realizarem na elucubração solitária. É isto: a apoteose do acaso, onde até a espontaneidade é simulada, onde os encontros são de mão única, onde até se vive, às vezes, toda uma história em comum sem o conhecimento e a anuência do destinatário destes afetos anônimos.

p.s. Porque eu estou percebendo as pessoas um pouco "embriagadas de amor", ultimamente (mesmo que amores de mentirinha...)

segunda-feira, setembro 11, 2006

terça-feira, setembro 05, 2006

o perigo iminente

Eu invento sonhos pré-moldados para mim - planos, estratagemas, discursos que vou dizendo mais para convencer a mim mesmo e suprir silêncios do que qualquer outra coisa - e agora fico morrendo de medo do momento em que as pessoas vão descobrir que eu na verdade sou uma fraude.

terça-feira, agosto 15, 2006

asas do desejo

Nós, que somos humanos, temos medo do fim, medo do efêmero, da conseqüência irreversível dos nossos atos sempre mudando o que é frágil, sempre prometendo “conseqüências sem volta”. Medo.
Os anjos nos sonham, sonham os homens e mulheres e suas possibilidades, sonham o agora em vez do para sempre e da eternidade, desejam dizer apenas um oh! ou um ah! em vez de um amém!. Os anjos, porque são anjos, vivem nossos sonhos e sonham nossas vidas, esperando sentir o gosto do sangue, o calor das mãos, a realidade no desejo e a incerteza da mortalidade. Os anjos, coitados, não vivem e não morrem. Apenas são. E nos acompanham e ajudam, por muito de misericórdia e bondade mas, também, – eu desconfio -, pra viver em nós um pouco de nossas vidas. Habitam os lugares silenciosos, ouvem nossos pensamentos e, ao contrário das almas dos espíritos dos malassombros e das aparições, não nos trazem medo, porque não aparecem - apenas estão, sempre.
Antes de vê-los na televisão eu já pensava que eles devem estar sempre nas bibliotecas, porque lá é o lugar do silêncio, lugar em que estamos sozinhos e o nosso pensamento se faz mais alto: para eles, para nós, para ninguém.
Eles sabem que para as crianças não existe morte, porque a preocupação ainda é pequena e todo momento é único. E, como crianças, querem a curiosidade e a vivacidade em cada instante, porque no tempo em que as crianças são crianças elas se interessam por tudo, e não apenas pelo que envolve trabalho.
Ela, Hannah Arendt, resumiu bem a distinção entre a imortalidade e a eternidade: o homem, porque mortal, faz a imortalidade em suas obras, seus feitos, suas palavras; mas só é eterno quando atinge o indizível, quando descobre a possibilidade da contemplação, a mais sublime atividade humana. Foi ela quem disse: “é isto a mortalidade: mover-se ao longo de uma linha reta num universo em que tudo o que se move o faz num sentido cíclico”. O homem é mortal, faz-se imortal pela ação e aspira ao eterno em seus sonhos, embora sempre sabendo da sua última hora. Por isso também quando Patrícia, em Acossado, de Godard, pergunta ao escritor: “qual a sua maior ambição?”, ele responde: “tornar-me imortal e, depois, morrer”.
Os anjos que são eternos nos sonham. Coitados dos anjos, não podem morrer. Mas fiquei na dúvida: seriam eles como as crianças? Afinal, os anjos perguntam?

“Quando a criança era criança,
Era a época dessas perguntas:
Por que eu sou Eu
E não Você?
Por que eu estou aqui e
por que não lá?
Quando começou o tempo
E onde termina o espaço?”

o anjo e a trapezista


domingo, julho 30, 2006

porque só roberto carlos mesmo pra gostar de domingo...

Ah, o domingo, o domingo... Você acorda logo cedo, tem aquela música bonita de Cartola tocando na sala, o cheiro bom de comida já tomando conta da cozinha, aquele ambiente familiar no qual as pessoas queridas aproveitam o merecido descanso, depois de uma semana de trabalho, pra tomar uma cervejinha, beliscar uns petiscos. Que coisa mais bucólica, singela, familiar...
Ah, a lembrança da noite anterior - porque se o domingo é um samba canção, o sábado à noite é, sem dúvida, um rock com batida eletrônica - a lembrança dos últimos fatos, a cabeça doendo, o vou-deitar-de-novo-que-passa, o cadê-o-sonridor. Depois, o desespero pós-cochilo, a dor de cabeça ainda ali, o desengano do "almoço que não é", a cumplicidade dos parentes, um que diz: "- toma um sonrisal", a outra retruca: "- um epocler", depois o cunhado, resoluto, sintetiza: "- dois xantinon, uma dipirona e um sonrisal, pronto, fica novo", mas a irmã também considerando as alternativas naturais: "- tome um chazinho de carqueja, fio", daí o outro muda de idéia e radicaliza: "- toma uma cervejinha aqui que passa", e eu: "- cala a boca, miserável, se tu sugerir isso de novo eu dou na tua cara!" Depois é só um fluxo de idéias desconexas: "- ai, minha cabeeeeeça", "- e os trabalhos da faculdade por fazer", "-mas eu não bebi quase nada, meu Deus" e a clássica: "- nunca mais eu bebo hoje"...
Pois é, caros amigos, chega um momento na vida do ser humano em que não tem jeito: é fim de carreira! Ah, a ressaca, a ressaca...

domingo, junho 18, 2006

os movimentos desejantes

As ruas de uma cidade como Recife são feitas de pequenos detalhes. Pode-se notá-los ou simplesmente ignorá-los, tão pequenos. Refiro-me não apenas ao ambiente - ou aos lugares, fisicamente. Mas às pessoas, principalmente às pessoas. É bom e estranho pensar que durante algum tempo há um contato tênue, delicado, entre a vida de um, em toda a sua singularidade, e a de outros. São pequenas cenas, pequenos momentos que se desencadeiam de forma ágil, dúbia e incompleta. São centenas, milhares de cenas, e nós escolhemos aquelas para as quais olhar, fazendo-as acontecer, de fato, para nós. Somos nós que escolhemos às quais daremos importância e que merecerão ser, por nós, mais bem pensadas.

É como diz o nome de um livro: "os movimentos desejantes da cidade". Este título - e o pouco que li dele, depois, curioso - sempre estão na minha cabeça. A cidade, sua arquitetura, seu ritmo, sua dinâmica própria de lógica obscura, é feita de vontades, buscas, desejos, caminhos que se cruzam para logo depois se perderem. Ou como dizem Rodrigo Carrero e Angela Prysthon: "os atalhos da pós-metrópole", feitos de acaso, cumplicidades efêmeras, relações frágeis que quase nunca duram o suficiente para dar chão e sentido aos seus inseguros habitantes.

Mas quem vive em uma pós-metrópole? Nós, recifenses? Uma amiga contou uma história ótima de uma família daqui que se reúne, ela toda, grande e cheia de agregados, aos domingos impreterivelmente. Há, pois, os de bases sólidas, relações duradouras e certezas. Há destes que quando andam na rua, acompanhados ou mesmo sós, em suas expressões, em seus rostos nós podemos ver que sabem para onde estão indo. Mas há os que protagonizam outras histórias, mais desconexas, mais inconclusas, e estes quase sempre deixam entrever um pouco mais de suas vidas - a expõem, a contragosto, porque não podem esconder que o caminho que seguem é incerto e parece inventado a cada passo. Estes também, invariavelmente, parecem estar apenas indo - e o "onde" parece sempre uma mera casualidade, sempre mais desimportante que o movimento de tipo tão próprio àqueles que desejam e buscam.

Hoje, por exemplo, pela segunda vez houve uma pessoa em uma parada de ônibus que ficou me perguntando o nome dos ônibus que passavam, e desta vez demorei um pouco menos pra entender que ela - como a outra, da primeira vez - na verdade não sabia ler. Nas duas vezes em que isso aconteceu eu fiquei tão perplexo com a situação que hesitei muito em subir no meu ônibus quando ele chegou - em dúvida se deveria ou não tomá-lo e deixar a pessoa lá, tendo que encontrar alguém mais que lhe indicasse os itinerários. Ainda hoje não tenho certeza se deveria ter ficado lá, lendo-lhe os letreiros até que o seu finalmente passasse, ou se não era para tanto - porque às vezes parece também uma questão de respeito e lucidez entender e aceitar a fragilidade desses encontros. Hoje também eu vi um senhor tendo que convencer, com muita dificuldade, um homem que estava no ônibus ao seu lado a descer com ele na parada - que também era a minha parada. O homem estava bêbado - poucos minutos antes eu o tinha visto dar um gigantesco gole em uma garrafa de vodka nathasha (minha cabeça doeu só de ver aquilo...). Deve ter sido arrastado para casa. Deve ser parente do senhor que a custo o pôs para fora do veículo. Ou, o que é mais provável: deve ser algo muito diferente do que eu imagino, o contexto real destes pequenos episódios urbanos.

Isso em apenas uma viagem de Nova Torre. Mas todos os dias é assim: cobradores e cobradoras cansados; transeuntes com o olhar longe; estudantes no fim do dia com seus livros, muito sono e pouca disposição pra estudar; senhoras que parecem não dar conta de sua tripla jornada de trabalho; pedintes; vendedores ambulantes; acidentados; falantes que sempre puxam conversa e às vezes contam boa parte de sua vida; uns outros que sempre dão um jeito de pôr em pauta o fracasso do time de futebol adversário; pessoas que se isolam nos últimos bancos do ônibus pra chorar; outras que andam rindo sozinhas; pessoas que flertam, que desejam, que esperam por encontros ou os forjam, sem romantismo; trabalhadores cansados, que terminam mais um dia igual a muitos outros; trabalhadores que sonham com descanso mas ainda assim levantam no dia seguinte, ainda moídos, prontos sabe-lá-deus-como para tudo de novo; os que andam com medo, na rua, olhando para todos os lados, sem descanso; os recém-chegados; os que estão partindo; os que levam malas; os que trazem bebês... A cidade é uma profusão de vidas desordenadas, e cada uma é um microuniverso, é uma possibilidade, é a soma de muitos fatos, é uma mistura de escolhas, impassividades, inércias e abnegações; é um rumo tomado em detrimento de todos os outros; é o que acontece, mesmo com - e apesar de - tudo o que poderia ter sido. É fascinante, cansativa e assustadora. Todas vidas com um propósito, mesmo que inventado. Todas querendo chegar ao fim do dia e, chegando, desejam algo de bom neste percurso. Algo de felicidade em suas horas. Querem ser, apenas isso. E ainda assim tão difícil...

Tal é a sacrificante e bela mistura de esperança e desengano que testemunhamos à medida que se faz acontecer, em doses diárias que apenas começam quando a luz do dia se evanesce. E eu lembrei do verso de Nathalia: "Agora, quero tudo que desejo".

sexta-feira, junho 09, 2006

a sempre difícil arte de ser liso e feliz

(O “valor arcaico” declara oficialmente aberta a temporada do “É de graça? Então tá valendo”).

Eu inventei uma hora do recreio aqui na Católica. Foi assim: no meio da noite eu comprei um pastel de um real e esse pequeno contrato com a menina da barraquinha me deu o direito de consumir o dobro disso, de graça, em catchup. No meu caminho de três ou quatro metros, durante a volta, escutei um casal que tinha acabado de comprar uma carteira de cigarros na banca de revistas dizendo: “- Vou acender um”. “– Eu também”. Como há dois minutos atrás eu tinha pensado no quanto seria bom fumar um cigarro naquela noite – e também porque a inveja foi muita – resolvi juntar os trocados e adquirir meu novo estoque.
Mais três passos e lembrei do famoso melhor café da rua e fui espiar: expresso, 1,30. Contei o resto dos trocados: 1,20. Pensei em pedir um desconto - ou então negociar: “1,20 mais uma agenda 2005, seminova”. No fim das contas acabei preferindo o copo de nescafé, 0,50, em outra barraquinha. (E isso é que é café instantâneo!) O fósforo, claro, o senhor do “nescafé expresso” deu de cortesia, pra acender o cigarro. “Coloca aqui perto que eu acendo. Esse fósforo tá safado demais, a caixa tá meio molhada... Oh, eu vou riscar, vê se dá tempo”. Não deu. Outra tentativa: nao. Demorou muito ate que eu percebesse o ridículo da cena e o convencesse a tentar sozinho. Foi de primeira.
O melhor: nessa hora da noite – também porque era uma sexta-feira – tinha mesa vazia na “rua do prazer”. E resumindo foi isso: um copo de café, um cigarro que deu ate pra dar um barato, um povo passando pra lá e pra cá, a mulher da mesa da frente comentando o frio, e eu que ainda lembrei de olhar pra cima vi que era lua cheia (se não era, tava parecendo). Não podia ser melhor. Ou podia. Ainda havia uma brisa fria remexendo as árvores, e eu descobri que em qualquer lugar, quando é quase-chuva, da pra ouvir o mar. Isso tudo durou bons cinco ou seis minutos. No bolso, sobraram ainda umas moedinhas chacoalhando.
Porque se pode inventar a felicidade ate mesmo (não) estudando em uma biblioteca na sexta-feira a noite.

P.S. Esse foi pra tu, Lavinia. :P

sábado, maio 27, 2006

essa incansável lavoura do quase-domingo...

“sentindo duas mãos enormes debaixo dos meus passos, me recolhi na casa velha da fazenda, fiz dela o meu refúgio, o esconderijo lúdico da minha insônia e suas dores, tranquei ali, entre as páginas de um missal, minha libido mais escura...”


“o tempo, o tempo, esse algoz às vezes suave, às vezes mais terrível, demônio absoluto conferindo qualidade a todas as coisas, é ele ainda hoje e sempre quem decide e por isso a quem me curvo cheio de medo e erguido em suspense me perguntando qual o momento, o momento preciso da transposição? que instante, que instante terrível é esse que marca o salto? que massa de vento, que fundo de espaço concorrem para levar ao limite? o limite em que as coisas já desprovidas de vibração deixam de ser simplesmente vida na corrente do dia-a-dia para ser vida nos subterrâneos da memória...”

quinta-feira, maio 18, 2006

sand river

Há quem diga que o que determina a importância de algo é a sua permanência. Se ficou, se durou, então é porque é bom, é verdadeiro. E eu pensei nisso com relação à música também. Vendo um filme no último domingo, na Fundação, eis que em uma das melhores cenas eu escuto a voz doce e macia de Beth Gibbons cantando uma de suas músicas mais bonitas, e lembro que já há bons três anos eu venho escutando o seu Out of season, e é como um estado de espírito, – essa capacidade que a música tem de guardar sentimentos pra mais tarde, pra que a gente possa retomá-los do lugar de onde parou, ao ouvi-la de novo! – como uma história feita de chuva, frio, tempo cinza e recolhimento. Há músicas para o sol, para o mormaço e também para o inverno – e quando chove eu lembro do Out of season, como lembro também, sempre, de Magnolia.
Talvez o passar do tempo determine as músicas que são modismos e as que fazem parte de nós, as que incorporamos ao nosso repertório de sensações e lembranças. Mas há também aquelas que ouvimos algumas vezes, ou durante um determinado período, apenas. E também essas, algumas vezes, a gente nunca esquece...

“Everybody knows this time
Shadows are drifting in silence
Where lost can't be found
Everybody knows this time

You'll get by
Move it on, let fate decide
And those water-coloured memories
Soft as a summer's breeze
...”

sábado, maio 13, 2006

sobre aquela dos beatles...

Eu já contei de quando e por que eu me intriguei de uma música dos Beatles?

Não foi nada sério, foi mais um trato. Eu não a escuto e ela não toca pra mim - embora nem sempre ela cumpra o acordo.

Mas um dia a gente se acerta e eu vou poder ouvi-la de novo, inteira.

quarta-feira, abril 26, 2006

palavas andantes

Tem um livro bonito de contos uruguaios do qual tenho extraído rápidas leituras, sempre que posso. Chama-se “As palavras andantes”, de Eduardo Galeano, e é todo ilustrado com xilogravuras de J. Borges, uma maravilha. O problema é que ele é ensolarado demais, folclórico, seco, mitológico e fantástico demais para este tempo - em Recife cai uma chuva grossa e boa de quietude.
Daí lembrei de um trechinho em que o autor fala dos meses do ano e descreve cada um, em uma “janela sobre o tempo”. Ele fala, por exemplo: “Em abril, tempo de silêncio, crescem os grãos do milho”.
Eu gosto dessas representações dos meses ligadas ao campo, à lavoura, ao semear – com os ciclos naturais regidos por uma lógica e uma sazonalidade que não existem mais por estas terras. Essa austeridade e coesão telúricas estão muito longe daqui, de fato, e a chuva forte de Pernambuco parece que só semeia mesmo cinza, vontade e silêncio e, por ora, o que se faz é refletir, ver - no mais urbano sentido de contemplação -, descansar, ler, tecer pensamentos e sentir consigo, calado.
Mas vejamos se daí germina alguma mudança. Segundo Galeano, “maio é tempo de colheita”. Eu, sinceramente, gostaria de não mais ler, em despretensiosas palavras alheias e em pequenos detalhes, nenhuma promessa. Mas... vejamos. Sempre se pode correr o risco e o êxtase de esperar...

sábado, abril 08, 2006

da história e algumas canções

Eu tinha escrito hoje, logo cedo, um texto gigantesco, cheio de considerações, entendimentos e espantos a respeito da idéia de estudar a forma como uma determinada comunidade de pessoas, por meio das suas formas de comunicação e dos seus discursos, representa sua idéia de historicidade – a idéia de como elas se vêem na construção de sua história individual e também na construção da história coletiva da qual todos fazemos parte. E nesse texto eu falava também de como isso me levou a pensar, antes de tudo, sobre o meu próprio sentido de historicidade – de como eu próprio me vejo nessa loucura toda chamada tempo, que envolve um futuro que é feito, construído, e pelo qual somos todos responsáveis. Algo como se o distanciamento besta de querer estudar os outros me levasse a finalmente querer perguntar sobre mim mesmo, e me conhecer um pouco melhor.
Foi muita coisa, o que eu escrevi. Mas... Bem, é de tarde, agora, e eu depois de quase uma semana me dei o direito de fumar um cigarro e olhar a janela ouvindo Belchior, sentindo o tempo carregado de promessa de chuva, que eu tanto gosto, pensando em tudo e em nada e no que vem em seguida – no que preciso fazer do minuto seguinte. E me ocorreu então que esse é o meu sentido de historicidade.

E sim, os sinais ainda parecem todos fechados pra nós, que somos jovens.

segunda-feira, março 13, 2006

pós-política?

“Em que lugar e quem pode tomar decisões quando uma campanha eleitoral custa milhões de dólares e a imagem dos candidatos não se baseia em programas partidários, mas em adaptações oportunistas sugeridas pelas agências de marketing político? Até as ações de estilização do produto (a cirurgia plástica do candidato, a troca de guarda-roupa e o preço pago pelos comunicólogos que o aconselham) são divulgadas pela imprensa e televisão como parte do distante espetáculo pré-eleitoral. Esta dissolução da esfera pública como âmbito de participação popular é agravada pela tecnoburocratização das decisões nos governos neoliberais. Os conflitos são negociados entre os políticos (que cada vez são mais técnicos que políticos) e os empresários; os sindicatos e os movimentos sociais tomam conhecimento através dos jornais e televisão. O que fica para os cidadãos?”

(“Consumidores e cidadãos – conflitos multiculturais da globalização”, de Nestor García Canclini, pág. 241)

quinta-feira, março 09, 2006

fábio e a vida de estudante – parte 2

No ambiente reservado ao estudo da biblioteca, em todos os dias se busca algo diferente. Há em tudo algo como um silêncio tenso, uma vontade de leitura, uma resistência pelo aprendizado e para mim, sobretudo, uma possibilidade de fuga. Eu que não havia descoberto que é possível se esconder em idéias, agora corro para o excesso de palavras para me afogar no abstrato dos livros. E olho curioso os tipos humanos que percorrem o espaço, as caras conhecidas, as criaturas exóticas, os encontros sempre proveitosos com amigos, o burburinho de vida acadêmica que parece alheia, embora também devesse ser minha. E mesmo estando já mais habituado a estudar por aqui, regularmente matriculado, é no anonimato de visitante que me acomodo melhor.
No meu pensamento disperso eu olho o movimento constante, virando o rosto de tempos em tempos e abandonando o raciocínio raso da leitura para contemplar passantes, observar os corredores ou misturar constrangimento e jogo na observação dos estranhos com seus livros e suas idiossincrasias enquanto lêem. Eles, os estranhos, de vez em quando sentem-se observados e me olham também, e me divirto imaginando meu semblante de psicopata fitando os outros com cara de desconfiança ou risinhos esquisitos no rosto, eu que não sei pensar sem expressões faciais me acompanhando. Assim eu lembro também de Demian e resolvo que qualquer dia vou brincar de ser persuasivo: escolher alguém, mentalizar alguma ação - ordenar por exemplo “coce a cabeça”, “coce a cabeça” - e esperar pra ver se ele - ou ela - coça, mesmo. (Depois conto se dá certo, se acontece como no estranho romance do sujeito que tem a marca de Caim na fronte).
Mas como ia dizendo, na biblioteca o estudo é a menor das minhas ocupações. Aqui a gente anda entre as estantes cheias de volumes e é quase um sonho porque se acredita que, na leitura, pode-se ser um pouco de tudo e viver muito escolhendo menos. Estudar psicologia, direito, medicina, álgebra linear ou teologia: neste universo o único ônus de nossos experimentos é o tempo tomado pelas leituras escolhidas. Aceitando esta sacra dedicação, podemos ser um pouco psicanalistas - ler Freud, Jung e interpretação dos sonhos - ou historiadores, críticos de arte, arquitetos... Rompendo essa barreira de fatalismo solidificada pela falta de tempo e pela preguiça, podemos planejar viver várias vidas à medida que nos apropriamos destes textos. A escolha aqui também se mostra inevitável, claro, e se faz a cada página lida ou descartada, mas tudo parece ao alcance, as várias possibilidades que ignoramos nos nossos caminhos estão impressas e bem ali – a irresistível sedução de tudo que se pode construir com imaginação e de tudo o que se pode esquecer da amargura de outras horas.
É esta sedução que me faz perder longos instantes andando entre os livros, enriquecendo bibliografias que nunca iniciarei, criando roteiros de leituras que nunca acontecerão, mas me embriagando com a infinidade de coisas que desconheço e que parecem as únicas capazes de me salvar – nem pessoas nem fatos, pois disto já desisti. Deslizando os dedos entre os volumes - “Posse, possessória e usucapião”, “La anatomía humana”, “Filosofia medieval”, “Compendio de la teoria general del Estado”, “Teoria psicanalítica das neuroses”, “Anthologie du catholicisme social en France”, “Introdução ao pensar” (e eu que nem sabia que precisava me iniciar, comecei tão cedo e desordenado, também já nasci pensando) - as mãos e os olhos vão percorrendo tudo e os planos de ler, apenas, já satisfazem. Eu que tenho preguiça até de viver histórias inventadas...

(a primeira parte foi postada em agosto do ano passado)

sábado, março 04, 2006

bande à part

Um triângulo amoroso, flertes, romantismo e acidez, dois momentos musicais fantásticos, um significativo minuto de silêncio, a cena agora famosa da corrida no Louvre, tiros esquisitos em gente que não sabe morrer e um final com uma última cena de doer, de tão ruim. Este é mais um de Godard, e dos bons.

domingo, fevereiro 19, 2006

“- O meu carnaval sem nenhuma alegria!...”

Carnaval deveria ser algum tipo de plano emergencial que a gente aciona sempre que precisa e unicamente quando – e isso é o mais importante – ele for conveniente. Alguém bate o pé, uma batucada mais animada, uma vontade de festa e pronto, corre todo mundo, ajeita o carnaval que agora é hora! Mas não, ele chega sempre assim, data marcada em calendário, feriado concedido e pronto: é de vocês, divirtam-se, celebrem a vida e estejam imbuídos do espírito de confraternização – tudo assim, intransigentemente. E não há coisa mais desoladora para o ser humano do que a alegria compulsória, esfregada na cara e diluída em excessos.
E eu me pergunto onde estão as pessoas que fazem meu carnaval; em que esquina montaram o nosso bloco e esqueceram de me avisar; que misteriosa felicidade inventaram, essa, que comporta uma expressão tão insossa, uma inconclusão de despedida às pressas, com bilhete e na surdina; quem ignorou o suor farto das ladeiras e pontes e nos deixou, direto, esse suor frio de ressaca de cinzas.
Talvez por essa contradição insolúvel das grandes festas de rua, não são poucos os poetas que nos sentiram o carnaval em versos, e lembro que ano passado o que me ficou cristalizado como memória e referência foram os “Poemas da negra”, de Mário de Andrade, que falavam de um inesquecível carnaval pernambucano, com seus mangues, grilos, brisas, erotismo, madressilvas e cais. Esse ano... Sei não, mas se a promessa sedutora do modernista, no último carnaval, já não se cumpriu, esse ano eu já me sinto bem mais pro carnaval melancólico de Manuel Bandeira.
Mas vamos todos, sim, continuar, como Schumann, compondo nosso carnaval – porque ele, na verdade, ainda está por vir.

sábado, fevereiro 11, 2006

intervalo anticomercial #2

"Os homens inventaram um jeito batata de regular a máquina do fodido. O corpo do fodido ta desarranjado dum jeito que sente com a cabeça, pensa com a barriga e caga pelo coração.”

Jussara Pé de Anjo, uma das putas assalariadas, na Ópera do Malandro.

sábado, fevereiro 04, 2006

intervalo anticomercial #1

“Nas formas primitivas da sociedade, quando a maioria dos indivíduos vivia em dependência da terra de onde tiravam a própria subsistência, a experiência do fluxo do tempo estava estreitamente ligada aos ritmos naturais das estações e ao ciclo do nascimento e da morte. À medida que os indivíduos foram gradualmente sendo atraídos por um sistema de trabalho fabril e urbano, a experiência do fluxo do tempo foi se associando cada vez mais aos mecanismos de observância do tempo em sincronização com as horas de trabalho e com a organização dos dias da semana. Logo que o tempo começou a ser disciplinado pelos objetivos de aumentar a produção das mercadorias, houve uma certa troca: os sacrifícios feitos no presente eram trocados pela promessa de um futuro melhor. A noção de progresso, elaborada pelas filosofias iluministas da história e pelas teorias sociais da evolução, foi sendo experimentada no dia-a-dia da vida como o enorme hiato entre a experiência passada e presente de um lado, e os horizontes continuamente mutáveis das expectativas associadas ao futuro, de outro.
A experiência do fluxo do tempo pode estar mudando hoje. À medida que o passo da vida se acelera, a terra prometida para o futuro não se torna mais próxima. Os horizontes das expectativas sempre incertas começam a desmoronar, à medida que vão se encontrando com um futuro que continuamente fica aquém das expectativas do passado e do presente. Torna-se cada vez mais difícil persistir numa concepção linear da história como progresso. A idéia de progresso é um modo de colonizar o futuro, é uma maneira de subordinar o futuro aos nossos planos e expectativas presentes. Mas à medida que as deficiências desta estratégia se tornam mais claras dia após dia, e o futuro repetidamente confunde nossos planos e expectativas, a idéia de progresso começa a perder força entre nós.”

John B. Thompson. A mídia e a modernidade – Uma teoria social da mídia.

terça-feira, janeiro 24, 2006

pausa

Essa birosca tá fechada pra balanço.
Vou passar um tempo sem escrever aqui, porque é como diz a estória: quando não se tem nada de bom a dizer, o melhor mesmo é calar.
Ou como bem falou o crítico ao Guido, em Oito e meio, e que, a propósito, já mencionei aqui: “é melhor destruir, quando não se cria o essencial”.
Então vou ficar um pouco quieto, enquanto alimento o sonho de destruições maiores, ou até que peça penico e volte correndo pra essa válvula de escape e sedativo - o que acontecer primeiro.
Para a meia dúzia que passa por aqui: vejam o blog do Samarone, o www.estuariope.blogspot.com, que ele sim é cheio de coisa boa pra dizer (e eu rasgo a seda mesmo, porque sou fã).
No mais, deixo uma musiquinha pra animar os nossos intervalos anticomerciais aqui no valorarcaico.blogspot.com (anticomercial sim, porque o dono desse blog tá numa crise braba e sem precendentes mas ainda se pretende de luta :p).


"Quem tem consciência para ter coragem
Quem tem a força de saber que existe
E no centro da própria engrenagem
inventa contra a mola que resiste

Quem não vacila mesmo derrotado
Quem já perdido nunca desespera
E envolto em tempestade, decepado
Entre os dentes segura a primavera"

sábado, janeiro 21, 2006

a decadência americana e o vazio pós-moderno na visão perversa de Solondz

Assistir a Histórias Proibidas, de Todd Solondz, parecia um entretenimento de alto risco. Primeiro porque eu adoro muitas das bonitas músicas do Belle and Sebastian que estão em sua trilha sonora, e não era pequeno o risco de que as contaminasse irremediavelmente, em minha memória, com o clima deprimente que o filme prometia. Segundo porque há tempos, já, eu fico na corda bamba com esse time de diretores americanos que se especializaram em retratar com visão amarga e niilista a decadência social, familiar e afetiva que permeia a sociedade estadunidense, visão esta que está sempre no limite entre a crítica dura e o pessimismo decadente. De minha parte, adoro as porradas que Todd Solondz, Wes Anderson e Alexander Payne metem na mediocridade americana, mas o fato é que, como americanos e, mais que isso, como vítimas também dessa “crise pós-moderna”, eles tampouco demonstram ter algo de positivo a defender, e resumem-se a radicalizar, não sem certas doses de cinismo e perversidade, todo elemento humano e social dos nossos dias, incluindo-se aí questões sexuais, étnicas e midiáticas.
O filme em questão, com o título original e bem mais interessante de Storytelling, avança em pelo menos um ponto em relação a outros que seguem a mesma linha. Propõe uma outra e interessantíssima discussão que vem a somar-se e completar, oportunamente, esta simples ridicularização do “american way of life”: nele, aborda-se o ato de contar histórias, representar, interpretar e reconstruir a realidade via processos de comunicação, sejam eles literários, cinematográficos, documentais. Dividido em duas partes, Fiction e Nonfiction, o roteiro expõe a influência de quem se propõe a contar uma história sobre as idéias que comunica. A informação estaria condenada à parcialidade de quem a transmite e, assim, a veracidade do que é dito, bem como do discurso veiculado por esta mensagem, está comprometida ou, ao menos, relativizada pelos valores, preconceitos e experiências pessoais de quem a reproduz. Assim, um fato verídico pode parecer absurdo, mesmo quando expresso sob a forma de ficção, e um outro relato, mesmo quando se pretende documental, por sua vez, perde o caráter “real” quando mediado pelo ponto de vista daquele que relata.
É engraçado, então, como no filme de Todd Solondz a ficção e a não-ficção se misturam, se contradizem e se negam, na prática. A ficção, argumenta-se, pode ser simples veículo para mascarar fatos reais de modo a possibilitar a exposição e o debate de uma experiência (e, porque não, para ajudar o autor a remoê-la), assim como o que se propõe a ser documental pode resultar em uma visão deturpada, parcial e, consequentemente, em uma representação não fidedigna da realidade (e neste ponto acaba sobrando para a atuação do próprio cinema e da mídia, que manipulam realidades ao seu gosto e de acordo com suas pretensões).
Essa crítica social e essa pretensa “reflexão” vêm à base de uma narrativa destruidora e, para o quesito polêmica, Solondz escala um time de peso: um deficiente físico, um professor de literatura negro, uma empregada de nacionalidade salvadorenha, um típico adolescente cabeça oca - daqueles bem estereotipados -, um casal que parece viver à base de algumas caixas de lexotan diárias e ainda uma “adorável” criança prodígio, daquelas bem sebosinhas e irritantes mas que são consideradas pelo status quo como um sonho para qualquer família, meiguinha e inteligente.
No filme há também o que se pode interpretar na melhor das hipóteses como uma alusão à tão alarmada e evocada “crise ideológica atual” ou que (o que é bem mais provável) pode ser na verdade uma tentativa de ridicularizar qualquer crença e auto-afirmação da juventude: na camisa usada pelo jovem “protagonista” do filme (e do documentário que dentro dele está sendo realizado) estão estampados uma foice e um martelo. Ora vejam se o tão crítico Solondz também não acha bonito e inteligente ridicularizar pensamentos contra-hegemônicos! A impressão que fica, na verdade, é que pra ele nada serve e a vida é mesmo uma merda (acusação da qual, aliás, ele busca logo se defender, apressando-se em colocá-la na boca de um dos ridículos personagens que, enfurecido, grita para a câmera: “A vida é dura pra você? Azar!”).
Solondz mostra que o documentário realizado ao longo do filme só serve para dar o golpe de misericórdia na deprimente vida do garoto Scooby, e que a função almejada pelo diretor fictício interpretado por Paul Giamatti no mesmo documentário é, na verdade, ridicularizar e provocar o riso com a miséria alheia. Mas eu pergunto: não estaria ele, Todd Solondz, o diretor da vida real, de carne e osso, fazendo a mesma coisa com os seus personagens? Porque eu ri o tempo todo com as suas perversidades.

sexta-feira, janeiro 13, 2006

besteira à vista

Cá com meus botões, pensando (alguém mais sente isso?) que gostaria de tomar um banho de água sanitária, lavar tudo, por dentro e por fora, pra tirar as impurezas, as mazelas, o ranço - todas essas coisas ruins que fazem a gente se sentir sujo - quando tive vontade de ver no dicionário: o que, afinal, significa creolina?
Dúvida relevante demais, essa, a propósito. Eu sei que nem é a primeira vez que recorro a definições de dicionário, aqui no blog, mas na verdade eu às vezes gosto disso: pegar palavras que aprendi de ouvido, de tanto os outros falarem, e ver o que elas significam para além da banalização do uso diário.
Creolina. sf. Denominação comercial de um líquido anti-séptico à base de creosoto. (Danou-se, que agora deu preguiça de ver o que significa creosoto).
Eu tantas vezes lembro da cena de um filme em que uma mulher, lendo um livro deitada na cama, vai aos poucos sendo tomada por águas que, do nada, invadem o quarto e vão deixando-a submersa, envolta, alheia. Essa cena creio que significa a reminiscência de uma morte – a de Virgínia Wolf – mas eu às vezes lembro disso de forma menos mórbida, quero dizer, apenas como uma sensação boa de submergir, como se a água limpasse tudo – necessidade recorrente, essa, de uma limpeza profunda, subjetiva.
Mas o banho de água sanitária (que, aliás, lá em Juazeiro se chama kiboa, que é a marca de uma delas - algo como chamar de bombril a palha de aço) hoje é por motivos mais físicos, mesmo. Será uma súbita intolerância a essa vida junkie de álcool, fumo, sedentarismo, fast food, gorduras, enlatados, etc etc etc? Sei não – não me imagino adepto da macrobiótica ou dessas outras coisas de nome difícil que não dá nem vontade de pesquisar significado.
Aliás, por falar em dicionário: um dia, no Estuário, o Samarone falou de uma menina que disse que não tinha a palavra “feio” no dicionário dela.
Fui olhar: no meu tem. :Taca kiboa nele.

domingo, janeiro 08, 2006

canclini

“Há duas maneiras de interpretar o descontentamento contemporâneo provocado pela globalização. Alguns autores pós-modernos se concentram nos setores em que o problema não é tanto a falta, mas o fato de o que possuem tornar-se a cada instante obsoleto ou fugaz. Analisaremos esta cultura do efêmero quando nos ocuparmos da diferença de atitude entre espectadores que selecionavam os filmes pelo nome dos diretores e dos atores, pela sua situação na história do cinema, e videófilos interessados unicamente em estréias. Muito do que é feito atualmente nas artes é produzido e circula de acordo com as regras das inovações e da obsolescência periódica, não por causa do impulso experimentador, como no tempo das vanguardas, mas sim porque as manifestações culturais foram submetidas aos valores que ‘dinamizam’ o mercado e a moda: consumo incessantemente renovado, surpresa e divertimento. Por razões semelhantes a cultura política tornou-se errática: desde que se tornaram raros os relatos emancipadores que viam as ações presentes como parte de uma história e procura de um futuro renovador, as decisões políticas e econômicas são tomadas em função das seduções imediatistas do consumo, o livre comércio sem memória de seus erros, a importação afobada dos últimos modelos que nos faz cair, uma e outra vez, como se cada uma fosse a primeira, no endividamento e na crise da balança de pagamentos.
Uma visão integral, porém, deve dirigir o olhar em direção aos grupos em que se multiplicam as carências. A maneira neoliberal de fazer a globalização consiste em reduzir emprego para reduzir custos, competindo entre empresas transnacionais, cuja direção se faz desde um ponto desconhecido, de modo que os interesses sindicais e nacionais quase não podem ser exercidos. A conseqüência de tudo isto é que mais de 40% da população latino-americana se encontre privada de trabalho estável e de condições mínimas de segurança, que sobreviva nas aventuras também globalizadas do comércio informal, da eletrônica japonesa vendida junto a roupas do Sudeste Asiático, junto a ervas esotéricas e artesanato local, em volta dos sinais de trânsito: nesses vastos ‘subúrbios’ que são os centros históricos das grandes cidades, há poucas razões para se ficar contente enquanto o que chega de toda parte se oferece e se espalha para que alguns possuam e imediatamente esqueçam.”
Trecho do livro “Consumidores e cidadãos – conflitos multiculturais da globalização”, de Nestor García Canclini