domingo, junho 18, 2006

os movimentos desejantes

As ruas de uma cidade como Recife são feitas de pequenos detalhes. Pode-se notá-los ou simplesmente ignorá-los, tão pequenos. Refiro-me não apenas ao ambiente - ou aos lugares, fisicamente. Mas às pessoas, principalmente às pessoas. É bom e estranho pensar que durante algum tempo há um contato tênue, delicado, entre a vida de um, em toda a sua singularidade, e a de outros. São pequenas cenas, pequenos momentos que se desencadeiam de forma ágil, dúbia e incompleta. São centenas, milhares de cenas, e nós escolhemos aquelas para as quais olhar, fazendo-as acontecer, de fato, para nós. Somos nós que escolhemos às quais daremos importância e que merecerão ser, por nós, mais bem pensadas.

É como diz o nome de um livro: "os movimentos desejantes da cidade". Este título - e o pouco que li dele, depois, curioso - sempre estão na minha cabeça. A cidade, sua arquitetura, seu ritmo, sua dinâmica própria de lógica obscura, é feita de vontades, buscas, desejos, caminhos que se cruzam para logo depois se perderem. Ou como dizem Rodrigo Carrero e Angela Prysthon: "os atalhos da pós-metrópole", feitos de acaso, cumplicidades efêmeras, relações frágeis que quase nunca duram o suficiente para dar chão e sentido aos seus inseguros habitantes.

Mas quem vive em uma pós-metrópole? Nós, recifenses? Uma amiga contou uma história ótima de uma família daqui que se reúne, ela toda, grande e cheia de agregados, aos domingos impreterivelmente. Há, pois, os de bases sólidas, relações duradouras e certezas. Há destes que quando andam na rua, acompanhados ou mesmo sós, em suas expressões, em seus rostos nós podemos ver que sabem para onde estão indo. Mas há os que protagonizam outras histórias, mais desconexas, mais inconclusas, e estes quase sempre deixam entrever um pouco mais de suas vidas - a expõem, a contragosto, porque não podem esconder que o caminho que seguem é incerto e parece inventado a cada passo. Estes também, invariavelmente, parecem estar apenas indo - e o "onde" parece sempre uma mera casualidade, sempre mais desimportante que o movimento de tipo tão próprio àqueles que desejam e buscam.

Hoje, por exemplo, pela segunda vez houve uma pessoa em uma parada de ônibus que ficou me perguntando o nome dos ônibus que passavam, e desta vez demorei um pouco menos pra entender que ela - como a outra, da primeira vez - na verdade não sabia ler. Nas duas vezes em que isso aconteceu eu fiquei tão perplexo com a situação que hesitei muito em subir no meu ônibus quando ele chegou - em dúvida se deveria ou não tomá-lo e deixar a pessoa lá, tendo que encontrar alguém mais que lhe indicasse os itinerários. Ainda hoje não tenho certeza se deveria ter ficado lá, lendo-lhe os letreiros até que o seu finalmente passasse, ou se não era para tanto - porque às vezes parece também uma questão de respeito e lucidez entender e aceitar a fragilidade desses encontros. Hoje também eu vi um senhor tendo que convencer, com muita dificuldade, um homem que estava no ônibus ao seu lado a descer com ele na parada - que também era a minha parada. O homem estava bêbado - poucos minutos antes eu o tinha visto dar um gigantesco gole em uma garrafa de vodka nathasha (minha cabeça doeu só de ver aquilo...). Deve ter sido arrastado para casa. Deve ser parente do senhor que a custo o pôs para fora do veículo. Ou, o que é mais provável: deve ser algo muito diferente do que eu imagino, o contexto real destes pequenos episódios urbanos.

Isso em apenas uma viagem de Nova Torre. Mas todos os dias é assim: cobradores e cobradoras cansados; transeuntes com o olhar longe; estudantes no fim do dia com seus livros, muito sono e pouca disposição pra estudar; senhoras que parecem não dar conta de sua tripla jornada de trabalho; pedintes; vendedores ambulantes; acidentados; falantes que sempre puxam conversa e às vezes contam boa parte de sua vida; uns outros que sempre dão um jeito de pôr em pauta o fracasso do time de futebol adversário; pessoas que se isolam nos últimos bancos do ônibus pra chorar; outras que andam rindo sozinhas; pessoas que flertam, que desejam, que esperam por encontros ou os forjam, sem romantismo; trabalhadores cansados, que terminam mais um dia igual a muitos outros; trabalhadores que sonham com descanso mas ainda assim levantam no dia seguinte, ainda moídos, prontos sabe-lá-deus-como para tudo de novo; os que andam com medo, na rua, olhando para todos os lados, sem descanso; os recém-chegados; os que estão partindo; os que levam malas; os que trazem bebês... A cidade é uma profusão de vidas desordenadas, e cada uma é um microuniverso, é uma possibilidade, é a soma de muitos fatos, é uma mistura de escolhas, impassividades, inércias e abnegações; é um rumo tomado em detrimento de todos os outros; é o que acontece, mesmo com - e apesar de - tudo o que poderia ter sido. É fascinante, cansativa e assustadora. Todas vidas com um propósito, mesmo que inventado. Todas querendo chegar ao fim do dia e, chegando, desejam algo de bom neste percurso. Algo de felicidade em suas horas. Querem ser, apenas isso. E ainda assim tão difícil...

Tal é a sacrificante e bela mistura de esperança e desengano que testemunhamos à medida que se faz acontecer, em doses diárias que apenas começam quando a luz do dia se evanesce. E eu lembrei do verso de Nathalia: "Agora, quero tudo que desejo".

sexta-feira, junho 09, 2006

a sempre difícil arte de ser liso e feliz

(O “valor arcaico” declara oficialmente aberta a temporada do “É de graça? Então tá valendo”).

Eu inventei uma hora do recreio aqui na Católica. Foi assim: no meio da noite eu comprei um pastel de um real e esse pequeno contrato com a menina da barraquinha me deu o direito de consumir o dobro disso, de graça, em catchup. No meu caminho de três ou quatro metros, durante a volta, escutei um casal que tinha acabado de comprar uma carteira de cigarros na banca de revistas dizendo: “- Vou acender um”. “– Eu também”. Como há dois minutos atrás eu tinha pensado no quanto seria bom fumar um cigarro naquela noite – e também porque a inveja foi muita – resolvi juntar os trocados e adquirir meu novo estoque.
Mais três passos e lembrei do famoso melhor café da rua e fui espiar: expresso, 1,30. Contei o resto dos trocados: 1,20. Pensei em pedir um desconto - ou então negociar: “1,20 mais uma agenda 2005, seminova”. No fim das contas acabei preferindo o copo de nescafé, 0,50, em outra barraquinha. (E isso é que é café instantâneo!) O fósforo, claro, o senhor do “nescafé expresso” deu de cortesia, pra acender o cigarro. “Coloca aqui perto que eu acendo. Esse fósforo tá safado demais, a caixa tá meio molhada... Oh, eu vou riscar, vê se dá tempo”. Não deu. Outra tentativa: nao. Demorou muito ate que eu percebesse o ridículo da cena e o convencesse a tentar sozinho. Foi de primeira.
O melhor: nessa hora da noite – também porque era uma sexta-feira – tinha mesa vazia na “rua do prazer”. E resumindo foi isso: um copo de café, um cigarro que deu ate pra dar um barato, um povo passando pra lá e pra cá, a mulher da mesa da frente comentando o frio, e eu que ainda lembrei de olhar pra cima vi que era lua cheia (se não era, tava parecendo). Não podia ser melhor. Ou podia. Ainda havia uma brisa fria remexendo as árvores, e eu descobri que em qualquer lugar, quando é quase-chuva, da pra ouvir o mar. Isso tudo durou bons cinco ou seis minutos. No bolso, sobraram ainda umas moedinhas chacoalhando.
Porque se pode inventar a felicidade ate mesmo (não) estudando em uma biblioteca na sexta-feira a noite.

P.S. Esse foi pra tu, Lavinia. :P