quarta-feira, novembro 18, 2009

desfecho

Fui informado de que estou vivenciando o meu aniversário de Vênus e não entendi bem o que isso significa. Os oráculos improvisados, emitindo sinais de uma variabilidade admirável, deram agora pra festejar a chegada do prazer como anúncio de melhores tempos. Mas não poderia ser menos propícia a sugestão de abertura, já que, depois de algum esforço, eu consegui momentaneamente estancar a reiteração maníaca dos meus vícios, retirando-me a uma rotina mínima que se realiza circunscrita ao ambiente doméstico.

Aqui em casa, esquivo-me na medida do possível de todos os meus hábitos malsãos e acredito colher os efeitos benéficos dessa pequena ascese na boca do estômago, na localização obscura do fígado e ainda no indisfarçável S da minha coluna. Como um enfermo em período de reabilitação, dedico-me à gestão cuidadosa dos alimentos e ao cultivo de diálogos familiares incipientes como exercício mínimo de civilidade ao qual poucas vezes antes havia atinado.

Bem no centro da minha irritação coloquei as formas de conexão mais persistentes, de modo que qualquer pequena informação sobre esse ou aquele que colho quase por acaso via e-mails ou redes de relacionamento me causam um abuso gravíssimo que se espalha de modo voraz, tornando-se em segundos extensivo a toda humanidade.

Nestes dias, escrever tornou-se uma atividade sem começo, descartada à luz de qualquer primeira consideração a respeito. No mundo das declarações irritantes, calo-me primeiro e contribuo assim, sem muito mérito, para o misericordioso silêncio que porventura cairia sobre o mundo como uma benção mas que, como todo milagre, nunca se faz possível e só se atualiza como desejo veemente. Um único minuto de silêncio, acompanhado por uma chuva grossa e um copo geladinho de chá de pêssego pra suportar essa cidade tão quente, eis o pedido que deposito aos pés de Vênus, a forma mais imedita e simplória de prazer possível.

Ainda assim, o espaço desatualizado do blog me proporciona uma dose extra de angústia porque escrever continua uma tarefa pendente, ou pelo menos a única onde creio poder organizar a linha dos meus dias. Angústia por não escrever, e angústia pelo já escrito que se acumula nos arquivos dos meus anos. Eles lembram seu potencial de intimidade devassada e sua natureza de confissão precária, sempre que o meu contador de visitas acusa uma nova consulta aos arquivos. Daí eu lembro que blog antigo dá vergonha, pelo caráter primário e pela qualidade duvidosa dos textos que acumulei e que, se pude escrever, é porque há instantes em que o poder curativo do que se escreve conta mais do que a precariedade do registro.

No entanto, penso em como me faz falta ler aqueles blogs tão pessoais, nos quais encontro uma forma de convivência muito sutil, compartilhando os dias com desconhecidos ou conhecidos-em-silêncio. É esse apreço pela vida do outro – não como exibição, mas como vestígio – que me afasta da ideia tantas vezes repetida de criar um blog mais bem definido e orientado, um corpo de textos menos pessoal e mais relevante. Mas relevância, orientação, são palavras que têm me dado uma preguiça! E, no fim das contas, se ter um blog serve pra alguma coisa, é sobretudo pra criar um espaço virtual de referências, lembranças, links para consulta – uma cartografia muito particular no meio dessa confusão de informações, textos e imagens que eu nunca consigo organizar direito.

Pensando bem, já posso perceber o início de uma saudade dessa vida tão antiquada de blogs pessoais. Isso, somado à vontade de renovar o espaço, conjurar a tralha toda dos últimos anos e amenizar a vergonha pelos arquivos inconsultáveis só poderia ter uma consequência: preparo a transição. Logo, logo providencio outro, porque este aqui já deu.

p.s. Lavínia pediu pra que eu não apagasse os arquivos, e eu nem faria isso. Como diria Nathalia, eu tenho apego pelas coisas imateriais.

terça-feira, outubro 13, 2009

sexta-feira, outubro 09, 2009

preocupação pra quê?

Se tem uma coisa que me tira do sério é a prorrogação de prazos. Porque com toda a minha desorganização, ou mesmo com coisas mais importantes a fazer (e, detalhe, sem recusar festa), ainda assim eu me lasco, viro noite, corro feito um doido mas cumpro tudo. Mas aí, claro, o prazo é estendido. Sempre acontece, é um mal crônico... E, na maior parte das vezes, sem maiores justificativas.

É como se não fizesse a menor diferença o fato de que qualquer prazo estabelecido, supõe-se, pretende ser levado a sério. Quando uma data é prorrogada - sem motivo justo - cria-se uma desigualdade, justamente no ponto em que se nivela tudo por baixo. Cumprir ou não cumprir já não faz diferença alguma: há sempre uma nova chance, e a palavra chance quase sempre me cheira a condescendência ou falta de critério.

O caso é que, pra piorar, eu odeio esperteza, e odeio pensar que a coisa toda funciona melhor quando resolvida só no jogo de cintura, "no carisma". E, no entanto, só esse ano eu consigo me lembrar de pelo menos três vezes em que isso aconteceu. E - na boa - nessas ocasiões eu me sinto verdadeiramente desrespeitado.

domingo, outubro 04, 2009

quinta-feira, setembro 24, 2009

conversa de bar

Divida uma vida em duas partes iguais. A segunda será sempre a mais escassa e impossível. Porque nela nos é exigido sempre prestar contas da primeira metade. Isso é o que se chama passado.

Envelhecer: tornar gradualmente mais ilegível e distante a ficção de um grau zero.

quarta-feira, setembro 16, 2009

astronaut

Duas carteiras de cigarro, alguns litros de chá e muitas audições dos discos do Beach house depois e eu estou quase terminando um trabalhinho meio sem futuro que inventei pra esse (estranhamente agradável) mês de setembro. Pois é: chá, cigarro e Beach house são dessas coisas que eu imaginei que tinham perdido espaço nos meus dias e que voltaram com força total. Uma delas precisa sumir, no entanto, e acho que nem preciso dizer qual é.

terça-feira, setembro 08, 2009

fato

Nada pode ser tão ridículo quanto aquilo que a gente mesmo escreveu há quatro ou cinco anos atrás.

segunda-feira, agosto 24, 2009

"tenderness"

Revejo algumas fotos suas e nesse exercício eu procuro, mais que uma lembrança, um estímulo (ou desculpa) pra refazer certos planos. Como se, ao aparecer em retrospectiva, o que foi vivido então crescesse, ganhando diferentes proporções e abrindo novas leituras. É uma forma de imaginar sem muita possibilidade de ilusão, essa, e nem faz falta alguma verossimilhança; é suficiente e estimulante que seja tudo assim, mínimo. Nas lacunas é que vou depositando todo o sentido que mobilizo pra preencher o que faltou conhecer. Como, por exemplo, o seu apreço por uma palavra em especial. Não poderia ser mais óbvio, nem mais afim à imagem que eu lembro. E é esse dado que ajuda a prolongar uma presença que permanece como traço imaginado, ocupação gatuita; presença que permite intuir uma conexão difícil e vaga para a qual os padrões da realidade não chegam nunca a constituir, de fato, um critério.

quarta-feira, agosto 19, 2009

vale a pergunta

Como eu não me deixo mais iludir por fantasias de exclusividade, sei que é comum a sensação, quando a gente começa a pensar em um novo projeto de pesquisa, de que pode estar se metendo em uma grande enrascada. Mas dessa vez, mais do que nunca, eu não consigo parar de me perguntar: onde é que eu estou me metendo, afinal? É como se a vontade cautelosa de desdobrar uma inquietação muito particular – e de delimitar um universo de leituras que, sendo rico e complexo, é porém bastante restrito – trombasse de repente com uma onda acadêmica, dessas tão avassaladoras quanto suspeitas; uma onda repleta de compilações, edições especiais, reformulações de departamentos e linhas de pesquisa, proféticas viradas epistemológicas.

Assim, se pudesse hoje consultar as minhas figuras de referência – aquelas cujas leituras, nos momentos de desgosto, lembram ainda a alegria de seguir estudando e pesquisando – eu não pediria indicações bibliográficas nem grandes esclarecimentos sobre as ideias por elas desenvolvidas. Tudo o que eu gostaria de ouvir seria uma opinião sincera a respeito de como seguir de forma apaixonada um argumento em meio a lógicas institucionais tão hostis. Como insistir em uma pergunta que, por algum motivo, acreditamos que vale a pena ser formulada, quando a sua força pode estar ameaçada por um possível modismo (e digo ameaçada não no sentido de que seja declarada obsoleta em relação a este mas, o que seria ainda pior, tragada como mais uma celebração do novo que se pretende legitimar).

quarta-feira, agosto 12, 2009

espera

A utopia que alimenta uma cabeça atormentada pelo tempo sem graça dos intervalos é ter o seu campo de foco reduzido ao imediato. É a retidão e o imediatismo absolutos que subsistem em uma sucessão de gestos mínimos e pragmáticos: beber chá, ler capítulo, enviar arquivo, comer ou beber isso.

A ambição maior é ocupar aquele lugar dos seres supostamente primitivos – quando caricaturizados por quem os representa – e aderir à sua fala inábil: mim fábio. Porque nem bem se começa a articular mais do que três palavras e já se começa a querer demais, e com esse querer vem todo o resto que ninguém sabe dizer o que é, porque é sempre diferente de tudo o que acontece.

Assim, que me interpele algo inesperado que eu não consiga compreender agora – é o que pede a cabeça suspensa –, e que os seus efeitos se prolonguem espalhando uma fina excitação que dê conta da articulação das minhas palavras. Porque estas, quando carentes de qualquer destinatário, começam a desdobrar-se em linhas fantasiosas (que são puro capricho), até se perderem no hábito de inventar, que nesse caso não é mais do que a confirmação de sua irrelevância.

Que surja, assim, algo misterioso o suficiente como para sugerir um outro nível de percepção – há pouco lembrado e novamente esquecido –, enquanto as pessoas vão sumindo juntas na mesma série desinteressada por onde passam, iguais em falta de importância e aleatoriedade, o chá, o livro, o doce, a cerveja, os pratos, o lixo, o sono, as horas.

quarta-feira, agosto 05, 2009

regressão periódica

Pouco antes de voltar, uma pergunta motivada por preocupações quase premonitórias obrigou o meu cunhado a contar, por telefone mesmo, o que tinha preferido deixar pra depois da minha chegada: “veja bem... o computador deu pau”. A narração das providências tomou então o lugar de qualquer tentativa de consolo, tornando-se uma forma de preencher a desolação (irremediável) com o relato de todos os pormenores da operação mal-sucedida de reanimação do disco rígido.

Filmes, músicas, arquivos perdidos – todo aquele transtorno que já é mais do que conhecido e que não vale a pena detalhar. Já aconteceu várias vezes e eu nem posso dizer que ainda me espanto. É como se a disposição das minhas imagens, textos, programas e informações obedecesse a um ciclo mais ou menos definido, de modo que, de tempos em tempos, eu preciso recomeçar – catalogando, ordenando, distribuindo tudo nos compartimentos que se inscrevem na trilha de um disco que não sobrevive às intempéries do ambiente nem ao esgotamento causado pelo meu mau uso (ou simplesmente à sua própria obsolescência programada, que eu ainda não consegui antecipar de nenhuma maneira satisfatória).

Backup dos arquivos mais importantes eu sempre tenho, mas por descuido ou desorganização o resto sempre se perde. E por um lado há certo alívio: por exemplo, pelo fim de todos aqueles links que eu arrastava pra lista de favoritos como forma de me livrar da ansiedade da informação inesgotável ou de um excesso de interesses que não encontra medidas nem paciência para serem devidamente trabalhados. Pra isso o defeito na máquina funciona como um tipo de space cleaning involuntário: de repente fica tudo novinho e as energias voltam a fluir em um espaço virtual limpo e pronto para ser reutilizado sem aquele entulho deixado pra mais tarde.

Por outro lado, essa contingência no uso e essa renovação periódica fazem com que a pessoa se sinta meio alheia no próprio computador. Então é como se eu sentasse aqui e estivesse em uma lan house, em algo que não é meu, que é provisório e que não tem nem os programas que eu preciso nem o acúmulo que vem com o tempo de uso. (E suspeito ainda que o volume de imagens digitais em mim vai gerar o efeito inverso do que prenunciam: vou chegar a uma idade avançada sem arquivo morto onde depositar o meu passado – as fotos digitais também insistem em se perder a cada nova pane).

Observando bem, no entanto, a situação atinge muitos outros níveis, ocorre com frequência: o quarto eu encontrei reordenado depois da arrumação que sanou os efeitos desastrosos da umidade do primeiro semestre, e o celular ficou sem agenda depois que o chip foi perdido pelos lados de lá. Difícil então é aceitar o fato de que aqui, também, eu terei que me mover com muita desenvoltura, sem o respaldo de nenhum acúmulo.

Acho que essa regressão a um estágio zero de uso simboliza a frustração de todas as minhas fantasias de aconchego. Porque quando eu estava fora eu dizia: lá eu tenho o meu computador, as minhas músicas, os meus filmes, o meu quarto, os meus contatos. Daí, como era de se esperar, eu volto e, nesses detalhes mais práticos, tenho a confirmação da minha suspeita: com as informações e com as tecnologias acontece como em todo o resto: é preciso mesmo estar sempre recomeçando. Ou então é que eu simplesmente cometi o erro de confundir os prognósticos. Aqui nada está ainda assimilado, tudo resiste à posse. Fora tudo é certo e resolvido, porque a ideia mesma de posse não faz sentido; tudo está para ser desfrutado como algo que tem dia e hora pra perder consistência, pra sumir na virtualidade como tem sido sempre o destino de todos esses meus arquivos perdidos.

quinta-feira, julho 16, 2009

a ordem da partilha

Morar em um espaço coletivo é acostumar-se a muitas idas e vindas, embora a despedida seja sempre percebida como o fim de uma oportunidade de conhecer que não pode mais ser adiada. É perceber a reiteração de momentos em que não deixa de existir uma lamentação pelo anúncio da futura ausência daquele que se despede e, mesmo assim, seguir sem muitos dramas, uma vez que todos, em certo sentido, estão esperando o momento de ir embora. Os que vão ficar mais tempo anseiam pelo tão sonhado lugar próprio onde podem fixar o pertencimento: se estudam ou trabalham, esperam encontrar um apartamento e abandonar enfim a situação provisória que, afinal, se adequa melhor às necessidades do mochileiro. Este, por sua vez, está sempre partindo e a excitação do trajeto e do próximo ponto a atingir no percurso lhe inspira a realizar uma despedida sinceramente alegre e entusiasmada.

Mas eu logo percebi, para o meu alívio, que de cada pessoa, estudante ou mochileiro, fica um pouco. Sabrina mudou-se logo pra um apartamento, mas ficou nos cigarros longos e finos que Laís agora fuma, desde que aprendeu com ela a apreciá-los. (Não mais cigarros standard, que causam sensação táctil estranha na boca – grossos entre o aperto dos lábios, como se fossem um charuto). Ficou também nas visitas constantes e na alegria com que a receberam a cada retorno.

Alejandro também partiu poucos dias depois com sua namorada, mas deixou comigo um pequeno presente: um singelo sapinho de brinquedo. “Ayuda a quitarte el miedo”, me disse. Tinha me escutado falar, dias antes, sobre minha fobia de sapos.

Bárbara, a italiana, também ficou em mim, na forma feliz com que cantou Vasos vacíos na primeira vez em que escutei essa música, no entusiasmo com que falava dos Redondos de ricota e também quando exclamava, infantilmente – “uuíííí!” –, sempre que tocavam no som do hostel outra de suas músicas favoritas.

Ariana ensaiou também sua partida mas voltou no dia seguinte, insatisfeita com os arredores pouco seguros de Abasto. Era de longe a figura mais simpaticamente estranha do hostel, e era sempre engraçado ouvir – mesmo sem entender – as gírias mexicanas que ela encaixava com a maior naturalidade em qualquer coisa que dizia. Graças a ela, trouxe comigo um filme mexicano antigo que ainda não vi e o interesse por todos os filmes de luta livre que ainda verei.

Outras pessoas não partiram ainda, e se são narradas no pretérito é porque sou eu que não estou mais lá. Das gélidas profundezas do quarto 10 ficou a companhia de Natacha, minha roommate. Lembro nossa longa conversa noturna quando eu contei praticamente um terço da minha vida – tantas revelações! – e nossa cumplicidade amparada em uma transferência de carinho com que, acredito, minimizamos a ausência da família, pra ela tão nova, pra mim já bastante tolerável. Acredito que em alguma medida nos cuidamos, preparando a comida um para o outro e fazendo-nos presentes em gestos simples. Em mim ela ficou ainda na lembrança de suas idas religiosas à Biblioteca Nacional e na obstinação com que estudava, suportando esta novidade amedrontadora – enfrentar a vida sozinha –, tão decidida em sua aparente fragilidade.




De Nubia, por sua vez, ficou a marca de uma leveza incomum, um modo de existir cada vez mais raro que aposta na alegria como recurso valioso. Nela nunca ficou sedimentada essa moda insuportável de pensar que o frio, o distante e o blasé são os novos “descolados”. Para ela o bonito está mesmo é na felicidade escancarada e é por isso que o seu carisma se espalha por todo o espaço. Impossível não lembrar Nubia dançando pela cozinha, no meio da sala, atrás do balcão, feliz como se tivesse todas as garantias, como se ela também não estivesse apostando tudo longe da Colômbia que não cansa de recuperar em seus relatos.

Claudia também tinha vindo dessa Colômbia que terminou me parecendo um país fascinante, tamanha é a vitalidade daqueles que o representaram para mim. Adorava cozinhar e suas refeições eram quase sempre fartas, o que não a impediu de provar, destemida que era, a carne acebolada que foi uma de minhas primeiras incursões à cozinha. Além disso, compartilhei com ela o gosto adquirido pela Fernet, e não apenas isso nos unia em nosso espírito festivo: ela era a única que, como eu, chegava às vezes ao meio-dia depois de uma noite de farra prolongada, com a cara amassada e um sorriso indisfarçável. Mãe, divorciada, fã de punk rock, certa vez disse em uma conversa: “me encanta la vida y trato de aprovecharla muy bien”.

Haroldinho por sua vez deve ter ficado em Tarsila, que voltou e, suponho, tem-no como uma lembrança incontornável da cidade, dada a constância da presença dele ao longo de sua breve viagem e o divertido tempo que passaram juntos.

Já em relação a Gaetán, o francês, devo confessar que o que ficou mesmo foi a raiva despertada pelas suas perguntas reducionistas e inegavelmente preconceituosas: “Os brasileiros não gostam muito de estudar, não”? “Mas os brasileiros não adoram futebol”? “Os jovens no Brasil são religiosos”?, e seguia, como se fosse possível enquadrar mais de 180 milhões de pessoas em um rótulo tão simplista e preguiçoso como o de “brasileiro”. De qualquer maneira, com ele exercitei o controle dos meus nervos e percebi que as pessoas, inclusive eu mesmo, recorremos às vezes a estereótipos nacionais como forma de nos aproximarmos dos outros e de tentar abreviar o tempo que levamos para conhecê-los.

Muitas pessoas vão se somando ainda a este pequeno exercício de memória, e cada um certamente deixou seu traço. Alguns deles durarão mais na lembrança, outros menos. Eu também devo ter permanecido de alguma forma. Nos livros que emprestei a Ariana e a Claudia – que leu um deles quando uma doença inoportuna a deixou de cama por alguns dias (sempre ela, a doença, aquela que vem nos lembrar que a distância da família e da casa pode favorecer a sensação de desamparo) –; nos lanchinhos e refeições que preparei, nas histórias de muitas tardes e também no tédio de algumas noites em que o tempo frio tornava a rua pouco convidativa. Talvez, sobretudo, eu tenha ficado na marca sutil de uma diferença minoritária que, não sendo sempre entendida, acredito que foi, porém, acolhida.

Ali, ao longo dos últimos cinquenta dias de viagem – que, desnecessário dizer, pareceram durar bem mais – encontrei algo como uma casa e pude construir meus vínculos. Um lugar para descansar e para estar sempre acompanhado, pois sempre havia alguém próximo, mesmo que em silêncio. Uma oportunidade para exercitar uma postura possível fundada na alegria de compartilhar, mesmo quando a necessidade de acomodação pedia recolhimento, mesmo quando se imaginava que a escassez exigia virar-se sozinho. Uma oportunidade para pequenos exercícios de sociabilidade que haviam permanecido como lacuna, diante da reserva.

Foi nesse espaço de convivência, por exemplo, que eu fui introduzido às cerimônias do mate. A princípio pedia que o preparassem pra mim, pateticamente amedrontado diante de toda a tradição que um gesto tão simples conformava. Depois, mais confiante, comprei um saco enorme de erva e comecei a tomá-lo com frequência, e nesses momentos não deixei de atentar para os detalhes ensinados, preparando para cada um sua porção, respeitando a ordem da roda, tomando-o primeiro e servindo-lhes em seguida. Nesses momentos de partilha era uma alegria besta e simples a possibilidade de ofertar-lhes algo, de ser eu o fio condutor a convidar e reunir a cada um dos presentes em torno da mesa. Outras vezes eu estava simplesmente lendo, tranquilo, e o meu recanto era então tomado de assalto por um grupo que decidia tomar café no meio da tarde, e então me traziam uma xícara, ofereciam um biscoito, e nestes momentos eu me sentia acolhido, temporariamente livre dos temores de estar para sempre avulso e de não lograr, por inaptidão ou puro desastre social, fazer parte do que quer que fosse.




quinta-feira, junho 11, 2009

hello, stranger

O demônio cruzou o meu caminho depois de uma agitada noite de domingo e eu assenti, aderindo provisoriamente ao seu pacto. Quando veio não congelou relógios, não exibiu truques assombrosos, não pretendeu impor a ordem de nenhuma seita. Chegou sem outra motivação aparente que a excitação gratuita da brincadeira.

Porque é justamente aí onde reside sua qualidade mais demoníaca: na falta de objetivos, na arbitrariedade com que nos escolhe e põe em movimento a máquina do seu jogo. (E é por isso que aqueles que pretendem atribuir-lhe uma causa, a intenção de converter-nos aos seus desígnios malignos, se equivocam: porque buscam explicá-lo pela mesma lógica finalística das santidades). Capturar-nos em um espaço-tempo efêmero de confusão e intensidade para depois reinserir-nos na ordinariedade das nossas vidas, marcados no entanto pelo estremecimento do encontro: eis o efeito mais nocivo da sua presença.

Não sei por que eu me tornei um dos seus cativos, naquela noite. Talvez beber em uma madrugada de segunda seja forma suficiente de adesão. Ou talvez eu o tenha evocado involuntariamente, ao procurar algo indefinido no meio do pequeno aglomerado. O fato é que, vendo-o então apenas de relance, eu a princípio o desdenhei, tomando-o pelo seu espectro falsamente inexpressivo. Tamanha soberba – erro fatal – só veio aumentar o impacto de sua primeira abordagem.

Disse algo que não lembro e que, no mais, não teve a menor importância. O importante foi dizer. O que se seguiu então foi uma série vertiginosa de temas e histórias, um abuso completo da linguagem que só poderia ser levado a cabo por quem conhece a malícia das palavras, dos jogos de sentidos, das lacunas, das informações que se contradizem, no tipo de humor ácido onde sempre desponta, ameaçadora, uma agressividade.

Em tudo os olhos, traços atordoantes. E a boca também, traço muito fino. Aconteceu de tal forma que no fim eu não havia logrado preservar nenhuma garantia de inteligibilidade. Resultou impossível diferenciar minimamente verdade e mentira, sugestão e piada, convite e armadilha. A única certeza veio da sua demonstração imponente de segurança, tão excessiva que só poderia atiçar a minha cobiça discretamente devastadora. Quando finalmente cedi, já era tarde. Era esse o inferno, dizer sim quando já não importava querer. O demônio sumiu antes mesmo de cruzar a esquina, tão logo decidi não mais vê-lo, mal desviei o olhar.

Cobiçar a tão enorme segurança, foi essa a marca que me deixou. Por isso não pude mais ser o mesmo. E por isso devastei minha casa. Com a petulância de quem está determinado a ser firme e também com irritação e impaciência – consequências mais certas desta vontade de eliminar todas as concessões e replicar a segurança sedutora que me foi exibida como dom improvável, demoníaco.

quarta-feira, junho 10, 2009

mudanças

Quando se aproximou o dia em que eu deveria deixar o apartamento onde fiquei pelos últimos dois meses aqui em Buenos Aires, ainda estava firme na decisão de ir pra outro bairro. Comecei a perceber, então, quantas coisas ainda me faltavam até que pudesse dar por concluída a minha temporada em San Telmo. Explorar mais uma vez os livros e dvds da loja que fica em frente à Facultad del Cine, tomar um café da manhã no Bar Granados, freqüentar o Pride Café – o MEU café em Buenos Aires –, tomar mais algumas cervejas de litrão sentado na calçada durante a feirinha de domingo... Estas coisas que não são importantes o suficiente pra justificar um deslocamento e que a gente só faz quando vive logo ali.

Daí que meio sem querer eu tropecei em um hostel na Calle Chacabuco e ele me pareceu tão interessante que aqui estou, há quase um mês e a apenas algumas ruas do cruzamento que já tinha se tornado bem reconhecível, Defensa e Independencia. E de repente então as coisas são assim: a gente se prepara pra uma grande mudança e quando ela chega descobre-se que é bem mais sutil do que imaginávamos. Nenhum problema, se isso significa simplesmente consolidar bases e tomar posse de lugares que só havíamos freqüentado na fantasia de nossas rotinas não-iniciadas. Posso continuar por mais algum tempo planejando fotografar o Bar Sur, por mim está tudo certo. A questão é que esse episódio me permitiu ver em retrospectiva como no estranho sempre persiste muito do que é familiar – mais talvez do que estaríamos dispostos a conceder.

Por outro lado, se me permito prestar atenção com um pouco mais de boa vontade, percebo: deixar o apartamento significou abandonar as noites de preguiça vendo televisão, as festinhas em casa para os amigos, as visitas inusitadas, a louça acumulada. Exigiu a inserção em uma nova lógica, muito atrativa, mais coletiva, de um espaço onde há pessoas circulando o tempo inteiro, conversas esperando para serem iniciadas. É cozinhar junto, é ver pessoas unirem-se à roda em qualquer noite da semana trazendo outra cerveja, é ser convidado pra uma sessão de cinema – filme de luta livre mexicana (!) – ou cantar junto com os colombianos uma canção do Aterciopelados, velha banda conhecida. É, enfim, deparar-se com as figuras ótimas que podemos conhecer – ou pelo menos ter a esperança de que, na pior das hipóteses, os menos simpáticos irão embora no dia seguinte. Tudo isso é ainda continuar pegando as mesmas linhas de ônibus e percorrendo diariamente as mesmas ruas, pra ficar com dois exemplos banais. Mas de repente isso é o que menos importa: o espaço, o entorno.

Não é desta vez que experimentarei morar em Almagro, Congreso ou Palermo. Ao menos nesta viagem, não tem outro jeito: enterrei o umbigo em San Telmo, como diriam os mais velhos da minha família. Melhor, então, reconhecer o lado bom do familiar e preparar-se para o inesperado. Ontem mesmo, depois de algumas horas escrevendo, saí pra um passeio rápido pelas mesmas ruas de sempre e encontrei, por puro acaso, um novo conhecido – ou seria um ex-desconhecido? Decidimos tomar um café juntos e ter a conversa que devíamos um ao outro. Sugeri o Pride que, repito, elegi o MEU café em Buenos Aires.

Porque já está mais do que na hora de tornar presente todos os meus sonhos de habitar a cidade.

segunda-feira, junho 01, 2009

blue interlude


Edward Hopper, Automat, 1927.

sábado, maio 02, 2009

feriados e manifestações

Na véspera deste primeiro de maio, milhares de trabalhadores se organizaram em distintos focos que convergiram, lá pelas 14h, para o cruzamento entre Avenida Belgrano e 9 de Julio. Lá estava armado um palco que trazia, em seu centro, a imagem do casal Perón e que foi o centro da manifestação que antecedeu o feriado. Daqui da Independencia vi crescer um desses aglomerados, enquanto a avenida ficava repleta de ônibus que traziam pessoas provenientes de muitas províncias próximas à capital. Com seus tambores, faixas e cartazes atravessaram San Telmo, enchendo o bairro com um som que tem se mostrado recorrente no cotidiano da cidade.

Antes, no dia 24 de março, eu já havia sido pego de surpresa pelo gigantesco ato público que marca também essa data. Chegando inadvertido a tal feriado (cuja existência eu até então sequer conhecia e que não encontra correspondente no calendário brasileiro), descobri a data ao mesmo tempo em que me deparei, na Avenida de Mayo, com a extensão inabarcável de grupos, movimentos, partidos políticos e sindicatos que marchavam organizados em direção à Plaza de Mayo. Tal feriado, descobri enfim, marca a instauração do regime ditatorial na Argentina e foi instituído para lembrar as atrocidades cometidas, além de homenagear os cerca de trinta mil detenidos-desaparecidos vítimas do regime. Assim, a grande manifestação encontra seu sentido pregnante na necessidade de, ainda hoje, exigir justiça na punição dos responsáveis pelos crimes, além de reavivar a reflexão sobre os mecanismos pelos quais forças repressivas, respaldadas por aparatos institucionais, chegam a assumir oficialmente o controle de um país. Não faltam então, nos diversos pronunciamentos que marcam o ato, referências a circunstâncias que tornam presente a violência institucional, a coação política e a pressão econômica que incide sobre os sujeitos nas múltiplas esferas de suas vidas.

Impressionante, nesse sentido, é a centralidade que assumem as imagens dos desaparecidos no desdobramento desse ato. Empunhadas pelos manifestantes, elas remetem, em sua constância, a uma crença na fotografia como representação, como reafirmação de uma presença que se faz vibrante na memória nacional. Estampados em faixas, roupas e cartazes, alçados ao topo de estandartes, reproduzidos como emblemas que condensam todas as reivindicações, os retratos trazem à tona uma falta que transborda o debate institucional para evocar a revolta motivada por um dano que nenhuma medida é capaz de reparar: a dor da perda, a saudade inconsolável que assola os familiares e amigos das vítimas.

A centralidade destas imagens está assinalada sobretudo pela faixa quilométrica que se estende ao longo do percurso e é conduzida pelos manifestantes até o centro da praça. À frente vão as madres da Plaza de Mayo, figuras que historicamente vincularam sua atuação a essa perda e à reivindicação de justiça que os crimes que a geraram suscitam. No entanto, o que se mostrou mais impactante – ao menos para mim – foi a multiplicação de silhuetas que, acompanhadas por inscrições que indicam nomes e funções profissionais, reclamam essa falta. Indicação que atua duplamente: elidindo as feições e identidades que a fotografia não pode substituir e aludindo a uma iconografia criminal pela reminiscência de corpos que foram suprimidos pela ação das forças oficiais.

Ao contrário do que eu poderia supor, porém, o desfile de segmentos e tendências que, deslocando-se em direção à praça, preencheram-na em toda sua amplitude, não se deu de forma grave ou vociferante. Nos rostos, danças, músicas e canções entoadas havia uma alegria, uma energia que se desprendia, enchendo de vivacidade esse tipo de acontecimento político que, em outros contextos, aparece por vezes em uma forma “esvaziada”. A manifestação de 24 de março é, afinal, uma grande ocasião em que convergem, de um modo que me pareceu à primeira vista bastante estranho, a lembrança de uma experiência social traumática e a alegria de uma celebração coletiva. O que se celebra – pensei depois como alguém que entra em contato com essa faceta da vida pública argentina pela primeira vez – é a capacidade de aglutinar-se ainda em torno de uma grande causa política.

Seguem algumas fotos feitas por mim no dia da manifestação, as primeiras que consigo postar por aqui. Infelizmente, elas não chegam nem perto de dar uma idéia da extensão do acontecimento que tomou conta do centro da cidade.





















































Día Nacional de la Memoria por la Verdad y la Justicia
24-03-2009

quinta-feira, abril 16, 2009

uma incômoda cartografia

No dia 28 de fevereiro chegamos à Almirante Brown e, depois de uma pequena investigação, encontramos o Hostal La Boca. Damián foi quem nos abriu a porta e começou a mostrar todas as dependências, detalhando os serviços e os preços. Em tudo parecia um lugar, por assim dizer, de estranhezas, algo novo por descobrir. As paredes pintadas de forma muito colorida, como os muros do Caminito, as amplas áreas comuns e o preço acessível justificaram toda a curiosidade e a vivência que eu tinha imaginado para aquele lugar, antes mesmo de conhecê-lo. A essa altura da viagem (o segundo dia, apenas!), La Boca já era, no entanto, uma zona perigosa, “bairro de imigrantes e ladrões”, assim nos advertiram alguns; “lugar feio, não vá lá!”, falaram outros, às vezes com expressão patética de susto, outras vezes com uma raiva indisfarçável. Eu, no entanto, desejei ficar, um pouco por apego aos planos iniciais, um pouco também porque de fato me senti atraído por tudo aquilo.

Com um incidente muito desagradável ocorrido um dia depois, o encanto por outros bairros e a distância considerável em relação ao metrô – ou subt, como dizem por aqui – decidimos estabelecer-nos em outro lugar. Restou, porém, um certo resentimento de minha parte em relação à forma com que alguns porteños dividiam o mapa da cidade em dois: “para aquele lado tudo vai ficando progressivamente mais feio, terrível; para este lado, pelo contrário, está tudo bem, é tranquilo”. Junto com esse eixo – a Av. Rivadavia, se bem me recordo – que corta a cidade em duas e ajuda a compor uma espécie de cartografia da marginalidade (impossível para uma cidade como Recife, por exemplo, que mais se assemelha a um mosaico perturbador onde se mesclam de forma complexa as áreas ricas e pobres), não pude deixar de notar a cadeia de significantes com que se ligavam o feio, o imigrante, o marginal, o perigoso.

De qualquer modo, como estrangeiro que parece ter sua condição escrita na testa, evito arriscar-me excessivamente, de modo que as incursões a estes territórios menos “garantidos” são feitas sempre com relativa cautela. E embora a ameaça da violência pareça, aqui, mais um dado informado pelos porteños que uma sensação desencadeada pelos lugares, de fato, nunca falta quem nos advirta sobre o caráter factual desse perigo. Na última vez em que fomos a La Boca – Tita, Sabrina e eu – um morador de rua veio, preocupado, advertir-nos de que nao fôssemos ali até a outra rua ou seríamos assaltados. Assim, categórico, não nos deixou muita margem para dúvida.

Apesar de tudo, o hostal indicado por um amigo recifense que já morou lá me parece ainda uma alternativa a considerar para o último mês na cidade e, sinceramente, não vejo nisso uma escolha heróica ou estúpida, apenas a opção que até o momento melhor corresponde às minhas reais possibilidades. Não que eu não esteja consciente da vulnerabilidade que acompanha os que estão perceptivelmente pouco familiarizados com os espaços da cidade, nem do tipo de atração que exercemos sobre os olhares locais. Onde quer que passamos as abordagens são sempre diferenciadas, e não é raro que as pessoas, mesmo os pedintes, dirijam-se a nós em três idiomas: castellano, inglês e português. Uns, mal olham para nós, já perguntam se somos brasileiros. Outros, quando nos vêem passando gritam “how are you? how are you?”. Reconhecidos como brasileiros ou confundidos com gringos norteamericanos, em ambos os casos essas minúsculas interpelações acumuladas causam-nos uma forte sensação de desconforto e de inadequação. Como se nos fossem lembrando, em cada percurso, que não pertencemos a este lugar.

Uma noite, em Palermo, estava sentado em um bar quando veio uma criança, uma menina de uns dez anos, e me ofereceu doces. Quando recusei ela chegou bem perto e ficou insistindo, baixinho: “pleeeease, pleeeease...”. Falei então, contido mas com rispidez: “¡Ya te lo dije que no!”. Não sei se gramaticalmente foi uma resposta “correta” – porque além de tudo tenho a sensação, aqui, de que minha desenvoltura com o espanhol tem sido sofrível – mas sem dúvida foi a resposta mais grosseira que eu poderia dar. Acontece que me causa um grande incômodo este tipo de interpelação em inglês, não só porque revela uma aptidão ostensiva das pessoas (inclusive dos mais excluídos) para o negócio do turismo. Também porque, no fim das contas, o que fica é a sensação de que o que se exige de mim é que eu simplesmente me adeque ao papel de turista, mesmo quando o turismo, ao menos nos termos “convencionais”, não constitui nem de longe a motivação maior da minha viagem.

Assim, a sensibilidade aguçada em relacão a certos aspectos da cidade que por vezes ficariam relegados à invisibilidade em um contato mais, digamos, trivial – como aquele que se estabelece entre seus habituais moradores – choca-se diretamente com a certeza de que o que se espera de mim é o que tenho menos: são os reais, os dólares ou, na melhor das hipóteses, os euros que como viajante eu poderia gastar e que, somados aos de tantos outros, aliviariam a carga que pesa sobre uma sociedade fraturada pela prolongada crise. Nesta configuração de papéis, o que fica fragilizado é a possibilidade de compartilhar o que quer que seja - inusitada hierarquia em que ocupo uma posição que tem muito pouco a ver com minha situação atual.

São estas questões delicadas que eu tento relatar, mesmo com o receio de que as observações possam em algum momento parecer insuficientes ou, o que é pior, contaminadas pelo mesmo elitismo que pretendem criticar. E é nesta complexa rede social onde busco situar-me, tentando não ser ingênuo mas tratando, também, de não absorver os preconceitos que recortam este espaço urbano em partes tão incomunicáveis.

domingo, abril 05, 2009

um verso

"Deseoso es aquel que huye de su madre".

De Llamado del deseoso, um poema de Lezama Lima, completo e com tradução aqui.

quarta-feira, abril 01, 2009

como não conseguir um trabalho

O tráfego de informações que vai do computador mosca-morta do apartamento até a lan house mais próxima me deixa completamente descompensado. A situação é tão problemática que os arquivos trabalhados em casa precisam transitar via e-mail, já que o meu pen drive sequer é reconhecido pela máquina. Entrando em uma semana crítica eu começo a repetir as confusões que o meu espírito de viajante cauteloso até então tinha buscado – com algum sucesso – evitar.

Eu pego o elevador e esqueço o porta-cédulas; eu fecho a porta e depois procuro o celular; eu vou ao locutório realizar uma chamada e parece que só então preciso do número do telefone; eu desço a Balcarce rumo ao centro e nem sei. Tudo seria contornável, não fosse pelo fato de que eu termino imprimindo a versão número um do currículo e apenas na hora da entrega noto que ali não consta o domicílio. Dias depois eu imprimo a versão número dois e só mais tarde lembro que da última vez já havia acrescentado à mão, a pedido da moça, o endereço do correio eletrônico. Agora, repito a entrega do currículo – o último referente à minha tentativa de ser professor de português, porque no fim das contas aqui eu preferiria trabalhar em um bar, juro – e mais uma vez lembro: o danado do e-mail que eu não coloquei. Tudo seria mais simples se eu pudesse salvar a versão atual no meu pen drive e descarregá-la no computador ali da esquina. Mas simplicidade pra quê. O negócio é acrescentar um borrão com a caneta-meio-falhando emprestada pelo senhorzinho da recepção, esse mesmo que vai dar um destino obscuro ao meu documento. Aí nessas horas eu me sinto como quase sempre: o menino amarelo que derruba os papéis no chão, apanha tudo com a mão imunda – a mesma com que mete o dedo no nariz, cutuca a casquinha de ferida – e quando vê já fez a maior sujeira e então vai passar um pedacinho de bombril pra ver se tira a mancha do papel (o que obviamente só piora a situação).

Como dessa vez não levei o envelope pardo, pergunto ao recepcionista – tentando resguardar um pouco de dignidade ao meu documento – se ele poderia prender as duas folhas soltas. Sim, penso em um grampeador, mas não sei como falar isso em castellano. Quando saio ainda olho pra trás e o vejo com as folhas soltas (e já rasuradas com o meu rabisco, vale lembrar), colando-as com um pedacinho de durex. Casquinha de ferida, é do que eu me lembro; manchinha tirada com pedacinho de bombril. Qualidade na apresentação: zero.

Ai, mais uma chance perdida.

segunda-feira, março 16, 2009

notícias do sétimo andar

La mujer sin cabeza foi reexibido aqui no último dia 11 como parte de uma mostra chamada Perspectiva M, realizada em comemoração ao dia da mulher. Foi o único que eu pude ver, e ainda assim saímos debaixo de uma chuva torrencial que me fez querer jogar no lixo os meus sapatos. O tempo instável finalmente se encaminha para um frio crescente e já penso em providenciar roupas mais quentes – até então, porém, apenas penso, ainda indeciso em relação ao que comprar. Sin problemas, todavía hay tiempo.


La mujer sin cabeza, de Lucrecia Martel.

No dia anterior pudemos ver uma apresentação de jazz na Casa de la Cultura: Alejandro Manzoni Trío. Aos poucos vou me encaixando nesses circuitos, onde posso conhecer melhor as coisas daqui e ao mesmo tempo suprir a vontade de participar desse tipo de atividades que costumo frequentar em Recife.

Por falar em hábitos recifenses, no sábado à noite conseguimos pela primeira vez fechar um bar. Depois que todas as mesas haviam sido devidamente recolhidas, o dono do La Resistencia veio fazer a pergunta que, longe de nos constranger, deixou-nos radiantes. Perguntou se queríamos copos de plástico para colocar nossas cervejas, e nesse momento percebemos que a noite finalmente acabava antes da nossa energia. Para lograr tal êxito, foi preciso conhecer os modos da cidade e adaptar-se a ela. Vimos séries na televisão, dormimos um pouco, tomamos banho, trocamos de roupa e saímos por volta das duas da manhã, que afinal, descobrimos, é quando a noite começa a acontecer por aqui. Primeiro umas voltas pelas ruas próximas: Defensa, Plaza Dorrego, Bolívar, Estados Unidos. Depois a escolha: Guebara, na rua Humberto Primo, até agora a maior preciosidade que encontramos. (Tem sido assim: toda semana conhecemos o nosso bar predileto. Primeiro foi o Puerta Roja, sugestão de Bel; depois o La Resistencia, na Defensa; agora o Guebara. Semana que vem provavelmente encontraremos outro lugar e teremos a certeza de que ele será aquele para o qual voltaremos todos os fins de semana).

Se ainda não disse, digo agora: finalmente encontramos um apartamento. Muito bem localizado na Av. Independencia, entre a Defensa e a Paseo Colón. Apenas um pouco acima do orçamento e sem a cobrança infame da comissão imobiliária, este nos pareceu viável. Mudamos no dia seguinte e aqui estamos, bem mais pobres e felizes, podendo dormir à vontade e ler com um pouco de paz. Enfim, algo assim como uma casa. Até já recebemos visitas. Com esse upgrade na nossa temporada argentina, estamos conseguindo aos poucos estabelecer uma rotina incipiente: cozinhamos, fumamos, bebemos vinho e ainda arranjamos tempo para ficar estarrecidos com os detalhes bizarros de parte da programação local. Outro dia um programa patrocinado por uma casa de eventos transmitia uma festa de quinze anos que era de uma cafonice sem igual nesse mundo. As novelas brasileiras também marcam presença: Lazos de familia e El rey del ganado. Dubladas em espanhol, por suspuesto.

Os sons daqui vão chegando aos poucos: ontem ouvi uma música no supermercado e já descobri os nomes da banda e da música (só falta conseguir baixar). Fora isso, ir a uma apresentação da Pequeña Orquesta Reincidentes está entre as atividades impossíveis que eu gostaria de realizar antes de ir embora (e que parece tão improvável quanto o privilégio de ver alguma conferência de Beatriz Sarlo, que nem sei se continua participando de conferências ou mesmo se ainda mora por aqui). Por enquanto me resigno à trilha sonora inusitada que tem marcado essa viagem. Músicas tão incidentais quanto Build, do Housemartins (aquela maravilhosa de motel, bem anos 80); The tide is high, do Blondie; e ainda os Beatles, que nos pegaram de jeito depois da terceira cerveja de um litro consumida na noite, pouco antes de sermos expulsos do La resistencia. Oportunidade para se admirar: "caramba, eu tinha me esquecido de como eu gosto dos Beatles..." É isso: fala-se tanto em tango, milonga, e a gente termina assim, strawberry fields forever.

quarta-feira, março 11, 2009

a melhor referência

Se antes eu já adorava os filmes de Martín Rejtman, agora que eu estou conhecendo Buenos Aires eu tenho achado ainda mais genial a forma como ele representa a cidade, suas figuras discretamente estranhas, seus lugares típicos. Está tudo ali: os paseadores de perros, o happy hour, as danceterias. Fico até preocupado com o peso dessa influência na minha percepção: onde todo mundo assinala uma certa aura romântica, charmosa e cordial eu vejo estranheza, humor absurdo e uma leve decadência.

As falas maravilhosas de seus personagens têm sido referências midiáticas onipresentes. (Eu ainda vou sentar na barra de um bar e pedir, em um fim de tarde, com cara de moribundo: cuatro whiskies!).



Felizes na danceteria, em Los guantes mágicos.


Indo e vindo de Ezeiza em Los guantes mágicos.


Os absurdos restaurantes chinos em Silvia Prieto.

terça-feira, março 10, 2009

god bless china

Ok, já que falaram tanto, aí vai um post sobre comida. Ontem finalmente pude conhecer um tenedor libre - restaurante do tipo all you can eat bem marcante pelos lados de cá. Estava ansioso. Afinal, aqui em Buenos Aires há muitas comidas interessantes, sobretudo a parrilla - de fato, carne é a grande especialidade porteña, geralmente é deliciosa - mas variedade é uma coisa que parece não existir por aqui. Pede-se uma carne e o máximo que vem é um acompanhamento: purê ou papas fritas ou arroz. E nada mais.

Para um brasileiro - ou melhor, um nordestino, ou melhor, um cearense - isso é de uma pobreza ímpar. Fico só lembrando das minhas idas a João da Carne de Sol, onde uma carne sempre vinha acompanhada por arroz, feijão, purê, macaxeira frita, vinagrete, paçoca, creme de queijo... Procurei os tais tenedores libres com a esperança de finalmente comer de forma cavalar, provando um pouquinho de cada coisa. Já estava até lembrando saudoso daqueles self services brasileiros maravilhosos onde você pode misturar de maneira absolutamente não-sofisticada uma feijoada com uma porção de camarão e outra de sushi.

Bom, minha surpresa é que esse tipo de lugar aqui parece ser uma típica invenção chinesa. Todos os que encontrei ontem na minha busca eram restaurantes chinos. Outra coisa é que a comida é terrivelmente mal preparada nesses estabelecimentos e as sobremesas, bom, para essas eu imaginei uma brincadeira: vendar os olhos, embaralhá-las e depois tentar adivinhar pelo paladar cada uma delas. Aposto que seria uma missão impossível. Ainda assim, saí de lá feliz pelo simples fato de poder comer salada com rolinho primavera e churrasco e macarrão e...

Reconheço que o nome desse post poderia ser atestado de pobreza. Mas para um magrelo como eu poucas coisas são tão importantes quanto a sensacão de saciedade, de estar bem nutrido. E aqui a carência de alguns alimentos que adoro é absurda. A pobreza dos sucos, por exemplo: sempre o exprimido de naranja ou uns licuados de banana ou pêssego que ainda não tive coragem de provar. Que saudade do Gelatto´s, aquele mixta da casa que vem com banana, abacate, mamão, laranja e tantas outras coisas que nem lembro e que fazem a gente achar que vai explodir depois que bebe. Agora eu acredito quando os nutricionistas dizem que a alimentação brasileira é exemplar: por enquanto tem me parecido impossível fazer uma refeicão fora daí que contenha vegetais, cereais, carboidratos e proteínas. É sempre uma coisa de cada vez, em porções generosas porém solitárias.

Bom, ao final dessa viagem talvez eu deva escrever um guia de sobrevivência para cafuçus em Buenos Aires. Refinamento gastronômico não é muito o meu forte.

Atualizaçao 11/03: Encontrei um lugar ótimo no Centro chamado Granix, que fica em uma galeria logo no comecinho da Calle Florida. Um buffet só com comidas vegetarianas deliciosas, saudáveis, variadas e fresquinhas. Como nada é perfeito na vida, o negócio é caro. O site que eu usei pra encontrar essa maravilha foi o happy cow.

domingo, março 08, 2009

bem-vindos ao deserto do real

Aluguel temporário de apartamentos definitivamente é coisa para turista gringo. Os preços estão sempre em dólar e as imobiliárias têm exigido uma comissão abusiva que corresponde ao valor de um mês de aluguel. A coisa fica assim inviável: vivemos três meses aqui e pagamos quatro, mais um depósito também no valor de um mês de aluguel que serve como garantia contra qualquer dano causado à propriedade e que será supostamente devolvido ao final. É desse modo que qualquer vislumbre do que seria uma boa oportunidade acaba tão logo a gente senta a bunda na cadeira das corretoras.

Nas andanças, conhecemos uma senhora estranha chamada Lida que apresenta nuances e variações no humor que me deixam perplexo e a fazem parecer um ser quase lynchiano. Nas duas vezes em que estivemos em seu escritório, dirigiu-se a nós de forma muito amável, conversou muito, falou dos filhos que vivem no Brasil, esforçou-se - junto com seu funcionário bonachão e também meio absurdo, Pancho - para encaixar-nos em alguma boa oferta. Empenhou-se, enfim, em demonstrar uma compaixão para com a nossa situação peregrina e ansiosa. Não obstante, tão logo visitamos os apartamentos e demonstramos interesse pelos mesmos, Lida revelou-se uma negociadora voraz, expondo condições, desfiando cálculos e tomando nota de nomes e dados relativos a documentos com a clara intenção de começar a redigir contratos. Desatou a falar em datas e mesmo em depósitos de reserva com uma velocidade inadmissível. Como não somos (tão) bestas, nas duas ocasiões tivemos tempo de ensaiar uns cálculos em meio ao falatório todo e perceber a inviabilidade da operação para o nosso orçamento.

Com a nossa recusa, declinando da operação, nas duas vezes a fala de Lida subitamente se transmutou, assumindo um traço exagerado de acidez e de abuso no seu tom de voz supostamente maternal, enquanto ela nos dizia, vingativa como uma matriarca que se ressente pelo não-reconhecimento dos seus esforços, que fazia tudo que era possível e que nós é que diríamos se seria suficiente ou não. Depois da fala agressiva, em uma segunda mudança repentina de tom ela se despediu e nos convidou a voltar, colocou-se à disposiçao e nos deu um beijo "afetuoso" enquanto nos dirigíamos à saída para recomeçar - do zero - a nossa busca. Embaixo do tampão de vidro de sua mesa, pudemos ver por diversas vezes o recorte de um quadrinho de jornal onde o personagem dizia: "la realidad no es responsable por la pérdida de sus ilusiones". Lida, afinal, tem um senso de humor sutilmente perverso e sentencioso, um comportamento que me pareceu tão opaco e ambivalente quanto tudo mais o que tenho visto por aqui.

quarta-feira, março 04, 2009

os primeiros percursos

Parece que já faz um mês que estou por aqui. O choque inicial foi enorme: quando cheguei no lugar onde havíamos feito reservas para os primeiros quatro dias na cidade - um hostel que fica na Calle Viamonte, pertinho do obelisco da 9 de Julio - tive vontade de sair correndo. Um lugar claustrofóbico e sem o menor charme. Desde então, Sabrina e eu já começamos a desenvolver aquela que tem sido uma estratégia essencial para a nossa viagem: beber à noite para aliviar o peso e o cansaço, processar as informaçoes e experiências vividas ao longo do dia. Na primeira noite, três quilmes fizeram o mundo parecer lindo e nos colocou falando da vida, da viagem, de tudo.

Acho que até agora não tivemos um minuto sequer de turistagem despreocupada. Milhoes de coisas para resolver que, somadas à nossa ansiedade e à preocupacão de ter que encontrar solucoes para economizar o dinheiro escasso tem nos levado a andar feito loucos pela cidade. Andamos muito, mas MUITO mesmo. A dinâmica é mais ou menos essa: passamos o dia percorrendo a cidade, depois bebemos um vinho e quando chegamos em casa detonados, fazemos um macarrão e depois desabamos na cama (quer dizer, eu desabo, porque Sabrina tem tido a insônia de sempre). Uma coisa é certa: voltarei para Recife com corpinho de maratonista queniano.

Bom, claro que conhecemos algumas coisas: fomos ao Caminito em La boca e planejamos voltar em breve, com mais calma. É um lugar absurdamente colorido, adorável e cheio de souvenirs que eu quis comprar aos montes, mas me controlei - adiar a compra é uma regra básica pra fazer o dinheiro render e evitar gastos desnecessários. Andamos também pela Recoleta, mas não tivemos paciência para ver o cemitério, apenas uma passada rápida. Nas nossas andanças chegamos também, quase por acaso, à Plaza de Mayo, vimos a Casa Rosada. Ok, esse foi o momento turistagem, mas tudo permeado pela pressa de ter que tomar as primeiras e urgentes providências.

Ah, no sábado à noite fomos para o que já sabíamos, desde o início, seria uma roubada, mas topamos porque somos pessoas destemidas e não recusamos nada que seja de graça. Ganhamos do hostel do centro, assim que fizemos o check in, duas entradas para uma boate em Palermo. Dito de forma simples, parecia a coisa mais medonha do mundo: um monte de boyzinho e boyzinha dançando músicas que fizeram a Quinta Black do Downtown chorar de inveja. Era só Beyoncé, Usher... Ainda assim nos divertimos, dançamos um pouco e falamos mal de todo mundo que víamos, inclusive com apelidos. Uma moçoila eu apelidei de menina de ouro - nao lembro bem o motivo, talvez porque me lembrou Hilary Swank e também porque, como dançarina, ela é uma ótima boxeadora. Palermo no entanto pareceu um bairro que merece ser desvendado, voltaremos lá em breve.

Depois dos primeiros dias que giraram em torno da hospedagem traumática e do medo de nos tornarmos homeless, finalmente viemos para o bairro que, já percebemos, será o nosso território aqui em Buenos Aires. San Telmo, o lugar onde as ruas são lindas, as pessoas interessantes, a comida bem mais barata e saborosa do que no centro e, por fim, os bares mais a nossa cara. No entanto, viemos para outro hostel, porque alugar um apartamento está sendo um martírio. Começo mesmo a achar impossível se não acharmos com quem dividir, ao menos pelo preço que podemos pagar. Mas isso é assunto para um outro post.

domingo, março 01, 2009

rumo ao kibbutz

Eu lembro sempre, agora, de uma pessoa muito especial que me relatou uma vez que, pensando em como poderia me conduzir a um determinado objetivo, uma tarefa a realizar - indicando pistas, rumos a seguir - viu-se tomada por uma súbita preocupação: seria eu capaz de chegar até o meu destino, objetivo final do percurso? Lembrou-se então, para seu alívio, de que bastava soltar um balão e - esperava-se - ele chegaria ao seu destino, sempre subindo, subindo...

Na madrugada desta sexta-feira fui tomado por um sintoma que pareceria (em qualquer outra situação) exagerado, fora de medida. Uma ânsia de vômito, uma dor na boca do estômago, uma pontada que não cessava. Algo próximo àquilo a que Nelly Richard certa vez chamou de desorden somático e que, neste caso, não era nada menos que a resposta de um corpo sedentário subitamente estremecido por uma cabeça nômade que lhe havia imposto a necessidade de mover-se rumo ao desconhecido, ao total desconforto - por desejo, por vontade de mudar -, e que respondia a este violento impulso com as consequências orgânicas de tal incômodo.

Minha viagem não foi nem um pouco agradável - considerando-se a noção adquirida de que minhas escolhas afetavam aqueles mais próximos e despertavam fantasmas, e de como elas careciam de bases sólidas (mas não carecem, sempre, quando sao verdadeiramente transformadoras?). É inconsistente e provisória, a jornada. É aventureira, súbita. É simples, mas ao mesmo tempo custa muito, exige decisão e - porque aqui nao cabem falsas modéstias - demanda certa coragem.

Durante os próximos tempos - talvez um mês, ou mesmo um semestre, não posso prever agora - este blog se transmite desde Buenos Aires. Uma aventura, uma aposta - uma besteira, sem dúvida. Uma vontade de mudar, porque assim eu vou subindo, subindo, voando, voando - rumo a tudo aquilo que desejo.

terça-feira, fevereiro 10, 2009

minha vida sem computador

Nas lições de administração a gente aprende (ou melhor, é obrigado a ouvir) alguns truques empresariais, repetidos à exaustão por professores que fazem de conta que isso é um segredo capaz de fazer toda a diferença em qualquer negócio. Um case famoso diz que as cadeiras das redes de fast food são propositalmente desconfortáveis. Com isso, garante-se a alta rotatividade, impedindo que adolescentes-ratos-de-shopping permaneçam nas dependências do estabelecimento batendo papo, sem consumir.

Daí fico me perguntando quem foi o primeiro iluminado que decidiu transferir esse princípio para as lan houses. Sim, porque com o desconforto, o barulho ensurdecedor, as crianças gritando, o teclado travando, a iluminação precária e a dor de cabeça quase instantânea, é impossível que essa ambiência infernal não tenha sido propositamente planejada para atribuir um caráter fast ao uso das máquinas.

Porém, sendo a internet um recurso altamente viciante onde uma coisa leva à outra e que pagamos de acordo com o tempo de uso, fico me perguntando porque sou tão hostilizado a ponto de se tornar quase impossível escrever algo pra atualizar o blog. Já pensando em como farei pra me comunicar com o mundo quando estiver novamente fora de Recife - e sem dinheiro pra comprar um laptop - desisto de entender a lógica dos negócios informais com a internet. Mas tudo bem, eu nunca tive sensibilidade empreendedora mesmo...

Resta apenas uma pergunta: como serão as lan houses en La boca?

terça-feira, janeiro 27, 2009

run fay run

O ano mal começou, mas eu já tô vendo que vou precisar de uma determinação, assim, kill bill pra sair dele inteiro.

sábado, janeiro 24, 2009

errâncias

"Caminhar é ter falta de lugar. É o processo indefinido de estar ausente e à procura de um próprio. A errância, multiplicada e reunida pela cidade, faz dela uma imensa experiência social da privação de lugar - uma experiência, é verdade, esfarelada em deportações inumeráveis e ínfimas (deslocamentos e caminhadas), compensada pelas relações e os cruzamentos desses êxodos que se entrelaçam, criando um tecido urbano, e posta sob o signo do que deveria ser, enfim, o lugar, mas é apenas um nome, a Cidade. A identidade fornecida por esse lugar é tanto mais simbólica (nomeada) quanto, malgrado a desigualdade dos títulos e das rendas entre habitantes da cidade, existe somente um pulular de passantes, uma rede de estadas tomadas de empréstimo por uma circulação, uma agitação através das aparências do próprio, um universo de locações frequentadas por um não-lugar ou por lugares sonhados".

Michel de Certeau, A invenção do cotidiano v.01.

domingo, janeiro 18, 2009

transtorno noturno

Hoje, pouco antes de despertar, tive um sonho curioso. Eu que nunca usei lentes e sequer sei bem que consistência têm me vi às voltas com um par delas nos olhos, e subitamente me dava conta de que havia estado com elas durante todo o tempo – do sono, da noite ou dos acontecimentos elaborados no sonho (e que pertenciam a uma outra temporalidade, talvez dias), não sei. Sei que toda irritação e estranhamento vinham do fato de que eu nunca tive nem o costume, nem a habilidade ou o conhecimento dos procedimentos necessários para o seu uso.

A primeira delas eu tirava de forma um pouco espantada, depois de tropeçar em muitos obstáculos sob meus pés meio descontrolados. A outra eu descobria grudada ao meu olho direito e sabia que precisava de algum líquido especial, que não possuía em mãos, para removê-la. O desespero ficava maior à medida que aquele objeto estranho ao meu corpo ia se mostrando mais e mais cravado, denunciando uma presença alheia a mim, marca de uma adesão tão minúscula quanto persistente. A situação que só piorava finalmente se resolveu quando, com movimentos já bastante agressivos, ataquei meus olhos com um grande jato d’água que sei lá de onde veio.

Essa imagem meio simplória eu supus que fosse esmaecendo ao longo do dia, perdendo importância até fugir da memória, como geralmente são os sonhos que, no instante em que despertamos, parecem muito graves e depois se revelam uma tolice. Mas a imagem não sumiu e depois de um tempo começou a me parecer bastante significativa: o sinal de um incômodo que, aparentemente banal, impõe-se e me desestabiliza com um transtorno que é imperceptível aos olhos desobstruídos dos demais.

Só sei que acordei com uma irritação terrível nos olhos.

sábado, janeiro 17, 2009

domingo, janeiro 11, 2009

uma referência

O professor Idelber Avelar está fazendo uma notável cobertura dos ataques israelenses à faixa de Gaza em seu blog, o biscoito fino e a massa. O material é extenso, repleto de referências importantes, citações, análises, comentários... Tudo pró-Palestina, obviamente. Inclusive, ele dedica boa parte do espaço para descascar os usos absurdos de recursos como a fala "ponderada".

Além disso, Idelber ataca o uso de alguns termos que, na melhor das hipóteses, seriam completamente inapropriados para discutir a questão (e digo na melhor das hipóteses porque, no fim das contas, isso cheira mais a puro cinismo que a mero equívoco). É o caso, por exemplo, das menções a um suposto "conflito" na região e também da despropositada distinção entre "civis" e "militares" no que se refere às vítimas palestinas. (Afinal, como falar em militares "numa nação que não tem estado"?)

Com essa loucura toda que envolve terminar uma dissertação, eu ainda não tive tempo para dar a devida atenção a todo o material por ele reunido, incluindo-se aí todos os links que constituem um material precioso para aqueles que queiram aprofundar a discussão sobre o tema. Desde já, no entanto, destaco, além das postagens anteriormente citadas, a rede que ele estabelece com blogueiros e usuários palestinos do facebook, que trazem uma perspectiva completamente diferente daquela a que teríamos acesso pelos noticiários.

quinta-feira, janeiro 08, 2009

o milagre da criação, bem ali na cozinha...

Aqui em casa agora existe um pé de inhame. Começou tudo assim de forma muito despretensiosa: abandonaram um inhame enorme ali na mesa da cozinha e dele começou a brotar uma mudinha, justamente quando as pessoas daqui viajaram pra passar o início de janeiro em outra cidade. No começo eu ignorei, afinal, não é a primeira comida que tenta virar planta por aqui – na geladeira tem sido frequentes os casos desse tipo, embora o apodrecimento ainda seja o destino mais comum para os vegetais não consumidos. Aí ela foi crescendo, crescendo, e eu também fui começando a frequentar mais a cozinha, porque a minha dieta de lasanhas congeladas – estilo super size me sadia – começou a tornar-se inviável.

Foi assim que um dia, enquanto improvisava uma coisinha ou outra – leia-se, sanduíche ou cuscuz - olhei pra mesa e eis que já se erguia diante de mim uma pequena haste verde e tesa, galgando centímetros em direção à prancha dos enlatados que fica pouco mais de um metro acima da mesa. O mais estranho é que eu comecei a nutrir um estranho sentimento em relação àquela pequena estrutura vegetal: ela me incomodava profundamente. Não sei por que comecei a associá-la a alguma presença maligna. Pior ainda: não sei em que background, lenda urbana, historinha do passado ou elemento da cultura midiática meu inconsciente se baseou para estabelecer tal associação, mas o fato é que o pezinho de inhame quase me botou medo.

Talvez tenha sido porque eu estivesse sozinho, ou porque o meu humor não vinha sendo dos mais favoráveis, mas aquela presença rígida cortando o espaço da cozinha e, o que é mais assustador (tudo bem, não é assustador, mas na ocasião me pareceu...), denunciando um crescimento admirável e surpreendente, me deixou tão desconfiado que houve um instante em que eu quase peguei uma faca pra acabar logo com a história toda. Mas fui adiando, adiando, porque eu gosto de procrastinar, porque me deu pena e também porque achei que seria uma gracinha infame esperar que minha irmã e meu cunhado voltassem e se deparassem com a comida virando floresta em cima da mesa.

O negócio é que a plantinha do satanás deve ser mesmo irresistível, ou então, todos os moradores dessa casa irremediavelmente desprovidos de iniciativa, porque a situação só piora: ninguém come o inhame, ninguém o joga no lixo e a muda já cresce frondosa e cheia de vigor. Não demora muito e ela vai estar se enroscando pelo açucareiro, pela garrafa do café... Daí eu fico imaginando uma espécie de sitcom norte-americana em que as pessoas passam pela cozinha com uma expressão abusada, pegam uma cerveja na geladeira, vão e voltam da área de serviço desfilando com uma cueca meio frouxa, olham pra mesa com cara de preguiça (claque em momento inapropriado) e por fim voltam para a sala pra curtir um pouco mais de preguiça no sofá.

p.s. Fui informado de que o inhame não está mais em condições de ser comido, e no entanto ele permanece lá, misteriosamente intocado. Já começo a pensar em possíveis nomes, para o caso de que ele se torne uma espécie de tubérculo de estimação.