terça-feira, novembro 29, 2005

Imagine a vida acontecendo em vinte e quatro frames por segundo. É mais ou menos nesse instante fugaz, em que a imagem vira movimento, que os sentimentos nos transpassam e mudam – ou assim eu fui levado a pensar, confundido e maravilhado pela multiplicidade de momentos com que às vezes a luz escrita e ritmada do cinema me presenteia. E a gente fica assim, sem saber o que nisso é vida, o que é engano, o que é fuga, o que é exagero. E nos perdemos indecisos diante de tantas vidas a viver, de tantos convites a ser, prontos e delineados em um estado de espírito que se insinua, dispondo-se a fazer parte de nós por algumas horas depois que vemos o último crédito e a última nota da indispensável música final ser tocada.
E a gente não sabe mais o que sente e a que se agarra nesse sonho consentido que é quase um pacto entre quem cria e quem aceita, quem encena e quem observa, quem toca e quem ouve. O coração, pequeno, fica entre a leveza de uma comédia nova-iorquina e a delicadeza de um drama adolescente, com os ouvidos inquietos passeando ora pela melodia sempre alegremente introspectiva de um jazz de Billie Holiday e a suavidade de uma cançãozinha americana boba e, no entanto, tão apropriada ao que se conta. Não consegue se decidir entre remoer um pouco mais a necessidade de agüentar e ir em frente, ou a instigante idéia de que cada pequena alegria, temor ou mistério é como tudo mais, “igual a tudo na vida”. Oscila ainda bom tempo nesse dilema até que, em uma conciliação sensata de escolhas duvidosas, experimenta pequenas doses, diversas, apostando que existir é a soma de tudo, que nada é totalmente ilusório ou absolutamente real e que em cada hora há espaço pra um pouco de comédia, drama, terror, guerra, morte, política, fantasia...
Sim, a vida é múltipla. Confesso, no entanto, que entre a alegre inteligência de um Woody Allen ou a poesia melancólica de Christine Jeffs eu preferiria, pelo menos no dia-a-dia, pelo menos na maior parte do tempo ou, como dizem, em condições normais de temperatura e pressão, a ironia, perspicácia, otimismo e bom humor do primeiro. Já deveria saber, no entanto: condições normais de temperatura e pressão não existem. Nossa cabeça está sempre fervendo ou, em alguns casos, cansada, prestes a congelar ao relento dos muitos abandonos, de nosso descuido. E nosso filme, esse que a gente vive de verdade, é quase sempre um pouco involuntário, onde no máximo temos a autonomia de inserir, mentalmente, nossas próprias músicas, aquelas que fazem crescer em importância e incrementam, com um toque especial de intensidade, os nossos fugazes instantes.

Para assistir:
Igual a tudo na vida, de Woody Allen
Chuva de verão, de Christine Jeffs

segunda-feira, novembro 21, 2005

Das angústias cotidianas

Há quem reclame pelo fato de que o dia tenha apenas vinte e quatro horas. O que dizer, então, daqueles que precisam, nesse curto período de tempo, viver duas vidas – a que querem e a que precisam? Aqueles que precisam se dividir, em sua vida dupla, e depois tentam se contentar em preencher, com alegria, os poucos espacinhos que existem entre uma violência e outra à sua própria natureza?
Aliás, às vezes eu acho que tenho na verdade três vidas: a que eu quero viver mas não posso e nem sei, a que posso viver mas não nem quero nem sei e a que eu sei viver mas não posso nem quero. E no meio disso tudo, onde, eu ?
Eu não agüento mais ter que ser muitos, inconciliáveis. Não agüento mais também andar travestido. Eu quero ser um só: completo, unitário.

...E que pelo menos a soma das minhas divergências, incoerências, instabilidades e nuances seja igual a um.

quinta-feira, novembro 17, 2005

Cinema e aspirinas e urubus e luz de puteiro e risos solitários e uniformes e casca e sonhos vazios e ruptura e amores parisienses e chofer e tese ridícula e fumaça e emoção revolucionária fantasiosa burguesa e estômago e sexo e músicas antigas e difícil renúncia e quase hora de partir e cantiga de enganar e...

“O mundo é talvez: e é só.”

segunda-feira, novembro 14, 2005

A pequena história dos homens de braços curtos

No mundo humano tem uma coisa chamada moda que é assim: quando se diz que algo é bonito, todo mundo gosta junto. Quando se resolve que é feio, não presta mais pra ninguém. Acontece que dia desses começou-se a desgostar de camisa de manga com a malha na medida – daquelas que cobrem o braço certinho, até o cotovelo. Um tal rapaz então começou a desconfiar que algo andava muito pequeno (ou ele muito longo): vestia, desvestia, provava, tirava, tornava a vestir mudas e mudas de roupa nova que achava em cada canto e nenhuma delas lhe servia. Enquanto isso, mais e mais gente na rua com seus braços um pouco à mostra de forma inacreditavelmente natural, harmoniosa, e ele, que já não tinha lá muita certeza das suas medidas, cada vez mais desconfiado de si: - há algo de errado aqui; ou muito esticado ou muito fino.
Matutou, matutou, “cismando na derrota incomparável”, até que lhe veio uma idéia iluminadora, dessas que são quase uma visagem, de tão claras e repentinas. Concluiu, num espanto, que o que acontecia não era moda coisa nenhuma. Lembrou de Darwin, de suas aulas, do pouco que captara das notícias da televisão, da adaptabilidade alheia, juntou uma coisa à outra e, num calafrio de quase desespero, percebeu que presenciava um desses momentos históricos únicos em que a humanidade dava um salto. Num rompante de esperteza suspeitou da rede de poder dissimulado que o circundava e desvendou: a moda é mentira, não existe. Não é culpa da moda, ela é só um disfarce. Os braços humanos é que estão mais curtos, eles é que agora só precisam estar ao alcance de um mouse, de um teclado, de um botão, de um apoio: tudo muito compacto, mínimo. Gente que é gente não tira mais coco, não sobe mais em árvore, não cobre mais ninguém de bofetada distante. Até isso: briga agora se ganha no movimento mínimo de um dedo no gatilho. A dança, então, faz tempo que ficou com menos movimentos ondulados, alongamentos sinuosos de tango... Agora é só punho levantado a noventa graus e passinho de cabeça, pescoço acompanhando. Tudo pertinho, acessível, na rapidez intimista da virtualidade, na graciosidade mínima da modernidade compacta. Carro mil com volante quase encostando no peito, movimento retrátil pra apertar botão de elevador, cotovelo inconveniente em poltrona de cinema... Viver ficou muito apertado. Adeus aos braços longos.
Atormentado, meio zonzo ainda com a perda do bonde da história, abalado pelo peso de uma sofrida fatalidade, sentida talvez apenas por aqueles que ficaram para trás na escala evolutiva, esmiuçou todo o golpe midiático que atribuiu a tendências fúteis de comportamento a responsabilidade pela mudança visual repentina que percebia nos corpos alheios. Ninguém mais o enganaria, no entanto, pois ele já tinha certeza: as roupas permaneciam as mesmas, os membros é que se haviam reduzido.
Impulsionado pela necessidade frenética de reagir, pensou na ação derradeira: compraria camisas curtíssimas, desmanchar-lhes-ia as costuras, expondo ridiculamente seu subterfúgio descarado: mangas artificialmente alongadas, mal escondendo a coloração desigual da pele durante tantos anos exposta ao sol de forma incompleta. Acima dos antebraços e cotovelos bronzeados, um pouco da pele alva que o novo modelo de camisa, adaptado ao novo tipo de braço humano, não dava mais conta de esconder. Pensou, matutou e reconsiderou a tentativa, desencorajado pelo ridículo de passear com roupas descosturadas, repuxando a malha esticada, tentando em vão torná-la maior. Um pouco mais resignado, decidiu-se por fim a adotar uma nova tática: a dos números maiores. Sairia à rua com camisas arrastando no cotovelo, incomodando a dobra do braço, passando um pouco da conta como camisas-pijama herdadas de irmãos mais velhos, na qual o corpo se perde no volume dos panos. Seriam como roupas de pivetes, criaturas-mirins, dessas que parecem esperar pelo crescimento inevitável em roupas já de adulto, crescendo dentro, já, das próprias vestimentas.
Vestiu-se e saiu por aí, apenas parcialmente aliviado, ainda um pouco cabreiro. Leva a crer, com sua escolha, que zomba da mudança, usa as roupas que bem entende, sabe já da farsa da moda e despreza a evolução humana, satisfeito em ser dos últimos longilíneos. Há quem diga, no entanto, que há um pouco também de farsa em sua artificial adaptação. Sua deselegância petulante seria na verdade - dizem as más línguas - a última tentativa angustiada de passar despercebido e não destoar tanto dessa nova raça evoluída que domina o mundo, com cotovelos tão mais perto dos ombros.

quarta-feira, novembro 09, 2005

São muitas, muitas coisas... Mas, por ora, isso diz tudo.

...E sabe lá Deus por que, lembrei da minha família ouvindo essa música:

A minor incident - Badly Drawn Boy

There's nothing I could say
To make you try to feel okay
And nothing you could do
To stop me feeling the way I do
And if the chance should happen
That I never see you again
Just remember that I'll always love you

I'd be a better person
On the other side I'm sure
You'd find a way to help yourself
And find another door
To shrug off a minor incident
And make us both feel proud
I just wish I could be there to see you through

You always were the one
To make us stand out in the crowd
Though every once upon a while
Your head was in a cloud
There's nothing you could never do
To ever let me down
And remember that I'll always love you