segunda-feira, agosto 24, 2009

"tenderness"

Revejo algumas fotos suas e nesse exercício eu procuro, mais que uma lembrança, um estímulo (ou desculpa) pra refazer certos planos. Como se, ao aparecer em retrospectiva, o que foi vivido então crescesse, ganhando diferentes proporções e abrindo novas leituras. É uma forma de imaginar sem muita possibilidade de ilusão, essa, e nem faz falta alguma verossimilhança; é suficiente e estimulante que seja tudo assim, mínimo. Nas lacunas é que vou depositando todo o sentido que mobilizo pra preencher o que faltou conhecer. Como, por exemplo, o seu apreço por uma palavra em especial. Não poderia ser mais óbvio, nem mais afim à imagem que eu lembro. E é esse dado que ajuda a prolongar uma presença que permanece como traço imaginado, ocupação gatuita; presença que permite intuir uma conexão difícil e vaga para a qual os padrões da realidade não chegam nunca a constituir, de fato, um critério.

quarta-feira, agosto 19, 2009

vale a pergunta

Como eu não me deixo mais iludir por fantasias de exclusividade, sei que é comum a sensação, quando a gente começa a pensar em um novo projeto de pesquisa, de que pode estar se metendo em uma grande enrascada. Mas dessa vez, mais do que nunca, eu não consigo parar de me perguntar: onde é que eu estou me metendo, afinal? É como se a vontade cautelosa de desdobrar uma inquietação muito particular – e de delimitar um universo de leituras que, sendo rico e complexo, é porém bastante restrito – trombasse de repente com uma onda acadêmica, dessas tão avassaladoras quanto suspeitas; uma onda repleta de compilações, edições especiais, reformulações de departamentos e linhas de pesquisa, proféticas viradas epistemológicas.

Assim, se pudesse hoje consultar as minhas figuras de referência – aquelas cujas leituras, nos momentos de desgosto, lembram ainda a alegria de seguir estudando e pesquisando – eu não pediria indicações bibliográficas nem grandes esclarecimentos sobre as ideias por elas desenvolvidas. Tudo o que eu gostaria de ouvir seria uma opinião sincera a respeito de como seguir de forma apaixonada um argumento em meio a lógicas institucionais tão hostis. Como insistir em uma pergunta que, por algum motivo, acreditamos que vale a pena ser formulada, quando a sua força pode estar ameaçada por um possível modismo (e digo ameaçada não no sentido de que seja declarada obsoleta em relação a este mas, o que seria ainda pior, tragada como mais uma celebração do novo que se pretende legitimar).

quarta-feira, agosto 12, 2009

espera

A utopia que alimenta uma cabeça atormentada pelo tempo sem graça dos intervalos é ter o seu campo de foco reduzido ao imediato. É a retidão e o imediatismo absolutos que subsistem em uma sucessão de gestos mínimos e pragmáticos: beber chá, ler capítulo, enviar arquivo, comer ou beber isso.

A ambição maior é ocupar aquele lugar dos seres supostamente primitivos – quando caricaturizados por quem os representa – e aderir à sua fala inábil: mim fábio. Porque nem bem se começa a articular mais do que três palavras e já se começa a querer demais, e com esse querer vem todo o resto que ninguém sabe dizer o que é, porque é sempre diferente de tudo o que acontece.

Assim, que me interpele algo inesperado que eu não consiga compreender agora – é o que pede a cabeça suspensa –, e que os seus efeitos se prolonguem espalhando uma fina excitação que dê conta da articulação das minhas palavras. Porque estas, quando carentes de qualquer destinatário, começam a desdobrar-se em linhas fantasiosas (que são puro capricho), até se perderem no hábito de inventar, que nesse caso não é mais do que a confirmação de sua irrelevância.

Que surja, assim, algo misterioso o suficiente como para sugerir um outro nível de percepção – há pouco lembrado e novamente esquecido –, enquanto as pessoas vão sumindo juntas na mesma série desinteressada por onde passam, iguais em falta de importância e aleatoriedade, o chá, o livro, o doce, a cerveja, os pratos, o lixo, o sono, as horas.

quarta-feira, agosto 05, 2009

regressão periódica

Pouco antes de voltar, uma pergunta motivada por preocupações quase premonitórias obrigou o meu cunhado a contar, por telefone mesmo, o que tinha preferido deixar pra depois da minha chegada: “veja bem... o computador deu pau”. A narração das providências tomou então o lugar de qualquer tentativa de consolo, tornando-se uma forma de preencher a desolação (irremediável) com o relato de todos os pormenores da operação mal-sucedida de reanimação do disco rígido.

Filmes, músicas, arquivos perdidos – todo aquele transtorno que já é mais do que conhecido e que não vale a pena detalhar. Já aconteceu várias vezes e eu nem posso dizer que ainda me espanto. É como se a disposição das minhas imagens, textos, programas e informações obedecesse a um ciclo mais ou menos definido, de modo que, de tempos em tempos, eu preciso recomeçar – catalogando, ordenando, distribuindo tudo nos compartimentos que se inscrevem na trilha de um disco que não sobrevive às intempéries do ambiente nem ao esgotamento causado pelo meu mau uso (ou simplesmente à sua própria obsolescência programada, que eu ainda não consegui antecipar de nenhuma maneira satisfatória).

Backup dos arquivos mais importantes eu sempre tenho, mas por descuido ou desorganização o resto sempre se perde. E por um lado há certo alívio: por exemplo, pelo fim de todos aqueles links que eu arrastava pra lista de favoritos como forma de me livrar da ansiedade da informação inesgotável ou de um excesso de interesses que não encontra medidas nem paciência para serem devidamente trabalhados. Pra isso o defeito na máquina funciona como um tipo de space cleaning involuntário: de repente fica tudo novinho e as energias voltam a fluir em um espaço virtual limpo e pronto para ser reutilizado sem aquele entulho deixado pra mais tarde.

Por outro lado, essa contingência no uso e essa renovação periódica fazem com que a pessoa se sinta meio alheia no próprio computador. Então é como se eu sentasse aqui e estivesse em uma lan house, em algo que não é meu, que é provisório e que não tem nem os programas que eu preciso nem o acúmulo que vem com o tempo de uso. (E suspeito ainda que o volume de imagens digitais em mim vai gerar o efeito inverso do que prenunciam: vou chegar a uma idade avançada sem arquivo morto onde depositar o meu passado – as fotos digitais também insistem em se perder a cada nova pane).

Observando bem, no entanto, a situação atinge muitos outros níveis, ocorre com frequência: o quarto eu encontrei reordenado depois da arrumação que sanou os efeitos desastrosos da umidade do primeiro semestre, e o celular ficou sem agenda depois que o chip foi perdido pelos lados de lá. Difícil então é aceitar o fato de que aqui, também, eu terei que me mover com muita desenvoltura, sem o respaldo de nenhum acúmulo.

Acho que essa regressão a um estágio zero de uso simboliza a frustração de todas as minhas fantasias de aconchego. Porque quando eu estava fora eu dizia: lá eu tenho o meu computador, as minhas músicas, os meus filmes, o meu quarto, os meus contatos. Daí, como era de se esperar, eu volto e, nesses detalhes mais práticos, tenho a confirmação da minha suspeita: com as informações e com as tecnologias acontece como em todo o resto: é preciso mesmo estar sempre recomeçando. Ou então é que eu simplesmente cometi o erro de confundir os prognósticos. Aqui nada está ainda assimilado, tudo resiste à posse. Fora tudo é certo e resolvido, porque a ideia mesma de posse não faz sentido; tudo está para ser desfrutado como algo que tem dia e hora pra perder consistência, pra sumir na virtualidade como tem sido sempre o destino de todos esses meus arquivos perdidos.