quinta-feira, junho 11, 2009

hello, stranger

O demônio cruzou o meu caminho depois de uma agitada noite de domingo e eu assenti, aderindo provisoriamente ao seu pacto. Quando veio não congelou relógios, não exibiu truques assombrosos, não pretendeu impor a ordem de nenhuma seita. Chegou sem outra motivação aparente que a excitação gratuita da brincadeira.

Porque é justamente aí onde reside sua qualidade mais demoníaca: na falta de objetivos, na arbitrariedade com que nos escolhe e põe em movimento a máquina do seu jogo. (E é por isso que aqueles que pretendem atribuir-lhe uma causa, a intenção de converter-nos aos seus desígnios malignos, se equivocam: porque buscam explicá-lo pela mesma lógica finalística das santidades). Capturar-nos em um espaço-tempo efêmero de confusão e intensidade para depois reinserir-nos na ordinariedade das nossas vidas, marcados no entanto pelo estremecimento do encontro: eis o efeito mais nocivo da sua presença.

Não sei por que eu me tornei um dos seus cativos, naquela noite. Talvez beber em uma madrugada de segunda seja forma suficiente de adesão. Ou talvez eu o tenha evocado involuntariamente, ao procurar algo indefinido no meio do pequeno aglomerado. O fato é que, vendo-o então apenas de relance, eu a princípio o desdenhei, tomando-o pelo seu espectro falsamente inexpressivo. Tamanha soberba – erro fatal – só veio aumentar o impacto de sua primeira abordagem.

Disse algo que não lembro e que, no mais, não teve a menor importância. O importante foi dizer. O que se seguiu então foi uma série vertiginosa de temas e histórias, um abuso completo da linguagem que só poderia ser levado a cabo por quem conhece a malícia das palavras, dos jogos de sentidos, das lacunas, das informações que se contradizem, no tipo de humor ácido onde sempre desponta, ameaçadora, uma agressividade.

Em tudo os olhos, traços atordoantes. E a boca também, traço muito fino. Aconteceu de tal forma que no fim eu não havia logrado preservar nenhuma garantia de inteligibilidade. Resultou impossível diferenciar minimamente verdade e mentira, sugestão e piada, convite e armadilha. A única certeza veio da sua demonstração imponente de segurança, tão excessiva que só poderia atiçar a minha cobiça discretamente devastadora. Quando finalmente cedi, já era tarde. Era esse o inferno, dizer sim quando já não importava querer. O demônio sumiu antes mesmo de cruzar a esquina, tão logo decidi não mais vê-lo, mal desviei o olhar.

Cobiçar a tão enorme segurança, foi essa a marca que me deixou. Por isso não pude mais ser o mesmo. E por isso devastei minha casa. Com a petulância de quem está determinado a ser firme e também com irritação e impaciência – consequências mais certas desta vontade de eliminar todas as concessões e replicar a segurança sedutora que me foi exibida como dom improvável, demoníaco.

quarta-feira, junho 10, 2009

mudanças

Quando se aproximou o dia em que eu deveria deixar o apartamento onde fiquei pelos últimos dois meses aqui em Buenos Aires, ainda estava firme na decisão de ir pra outro bairro. Comecei a perceber, então, quantas coisas ainda me faltavam até que pudesse dar por concluída a minha temporada em San Telmo. Explorar mais uma vez os livros e dvds da loja que fica em frente à Facultad del Cine, tomar um café da manhã no Bar Granados, freqüentar o Pride Café – o MEU café em Buenos Aires –, tomar mais algumas cervejas de litrão sentado na calçada durante a feirinha de domingo... Estas coisas que não são importantes o suficiente pra justificar um deslocamento e que a gente só faz quando vive logo ali.

Daí que meio sem querer eu tropecei em um hostel na Calle Chacabuco e ele me pareceu tão interessante que aqui estou, há quase um mês e a apenas algumas ruas do cruzamento que já tinha se tornado bem reconhecível, Defensa e Independencia. E de repente então as coisas são assim: a gente se prepara pra uma grande mudança e quando ela chega descobre-se que é bem mais sutil do que imaginávamos. Nenhum problema, se isso significa simplesmente consolidar bases e tomar posse de lugares que só havíamos freqüentado na fantasia de nossas rotinas não-iniciadas. Posso continuar por mais algum tempo planejando fotografar o Bar Sur, por mim está tudo certo. A questão é que esse episódio me permitiu ver em retrospectiva como no estranho sempre persiste muito do que é familiar – mais talvez do que estaríamos dispostos a conceder.

Por outro lado, se me permito prestar atenção com um pouco mais de boa vontade, percebo: deixar o apartamento significou abandonar as noites de preguiça vendo televisão, as festinhas em casa para os amigos, as visitas inusitadas, a louça acumulada. Exigiu a inserção em uma nova lógica, muito atrativa, mais coletiva, de um espaço onde há pessoas circulando o tempo inteiro, conversas esperando para serem iniciadas. É cozinhar junto, é ver pessoas unirem-se à roda em qualquer noite da semana trazendo outra cerveja, é ser convidado pra uma sessão de cinema – filme de luta livre mexicana (!) – ou cantar junto com os colombianos uma canção do Aterciopelados, velha banda conhecida. É, enfim, deparar-se com as figuras ótimas que podemos conhecer – ou pelo menos ter a esperança de que, na pior das hipóteses, os menos simpáticos irão embora no dia seguinte. Tudo isso é ainda continuar pegando as mesmas linhas de ônibus e percorrendo diariamente as mesmas ruas, pra ficar com dois exemplos banais. Mas de repente isso é o que menos importa: o espaço, o entorno.

Não é desta vez que experimentarei morar em Almagro, Congreso ou Palermo. Ao menos nesta viagem, não tem outro jeito: enterrei o umbigo em San Telmo, como diriam os mais velhos da minha família. Melhor, então, reconhecer o lado bom do familiar e preparar-se para o inesperado. Ontem mesmo, depois de algumas horas escrevendo, saí pra um passeio rápido pelas mesmas ruas de sempre e encontrei, por puro acaso, um novo conhecido – ou seria um ex-desconhecido? Decidimos tomar um café juntos e ter a conversa que devíamos um ao outro. Sugeri o Pride que, repito, elegi o MEU café em Buenos Aires.

Porque já está mais do que na hora de tornar presente todos os meus sonhos de habitar a cidade.

segunda-feira, junho 01, 2009

blue interlude


Edward Hopper, Automat, 1927.