sexta-feira, dezembro 31, 2004

Sete dias sem escrever. Penso que as últimas semanas foram como uma catarse. Tempo de chorar, de rir e, acima de tudo, de engatinhar um pouquinho no aprendizado daquela habilidade tão adulta de driblar a tristeza com a compensação, prolongar a alegria com a sensibilidade e os sentidos aguçados, disciplinar-se nos exercícios do silêncio e da palavra, da quietude e da euforia, da urgência e da contemplação.
Hoje é dia de escrever coisas bonitas: sou avesso a comemorações pomposas, palavras de fraternidade elegantemente distantes, abraços e beijos neutros e superstições desacreditadas, embora sempre repetidas. Sou, no entanto, adepto das linhas, dos marcos e de certos simbolismos internos (mesmo que pouco tenham a ver com tradições ou calendários). De todo modo, aceito este dia como o fim de algo bom, comovente, vivo, intenso. Aceito este dia como uma vírgula nas minhas experiências atribuladas, nos sonhos que descobri serem espantosamente realizáveis e naqueles que ainda se resguardam, inconsistentes e incertos.
Ver o tempo assim, em bloco, tem o seu valor. E encho-me de felicidade em perceber que somando e subtraindo as horas ao longo desses doze meses reafirmo, por um cálculo absurdo e inconcebível, de tão subjetivo, que este foi um ano único para se viver – e embora tenha medo de esquecer muitos destes instantes, sei que a maioria preservarei, mesmo que de forma sutil; mesmo que não os revisite na memória, cotidianamente.
É fim de ano e não sei o que dizer - mas também não tem muita importância. Amanhã haverá mais horas que se devem somar à nossa essência - ou serem descontadas dos nossos anos de vida, como queiram!
Deixo então ao menos dois fragmentos do que foi e do que ainda será, nestes muitos outros dias que virão...








Amor de loca juventud – Buena Vista social club

Mueren ya las ilusiones del ayer
que sacié con lujurioso amor
Y mueren también con sus promesas crueles
la inspiración que un día le brindé
Con candor el alma entera yo le di
pensando en nuestro idilio consagrar
Sin pensar que ella lo que buscaba en mí
era le amor de loca juventud.


sexta-feira, dezembro 24, 2004

Troquei a casa vazia de ontem por conversas existencialistas na cozinha, hoje, o que considero sobretudo inesperado – e momentaneamente animador.
Na verdade, só a idéia de sair um pouco daqui já torna os dias que se seguem mais alegres - tão fácil mudar as perspectivas depois que resolvi deixar a cidade em uma viagem relâmpago! Decidi deixar qualquer constatação para mais tarde e embarco rumo ao regaço familiar, permeado de conforto acolhedor, embora inevitavelmente distante. Vou assim para a terra onde penso menos, ambiciono menos e, no entanto, sublimo meu olhar tornando-o, uma vez mais, sensível ao que me cerca, no simples e ancestral entendimento que me aproxima da real dimensão de minhas dificuldades.
Há aqui um poema enorme e bonito, embora melancólico, que gostaria de compartilhar mas deixo para outra oportunidade, caso contrário esse blog desandaria de vez, necessitado que está de um contraponto para os excessos do dia anterior.
Ficam, então, outros versos - de força, simples e poderosos - mantendo suspensa a minha volta:

“... os que esperam, os que perdem
o motivo, os que emudecem,
os que ignoram, os que ocultam
a dor, os que desfalecem

os que continuam, os
que duvidam... Coração,
Afirma, afirma e te abrasa
Pelas milícias do não!”

Mário de Andrade, em Lira Paulistana

quinta-feira, dezembro 23, 2004

Rosário

Pergunto-me como cheguei a este ponto: a minha lista de intenções está repleta de linhas brancas. Levanto-me de súbito e o meu ambiente levemente particular, onde me deixo estar sem calma, está escuro. Aqui ninguém me veria. Aqui é o lugar do esforço, onde só o interesse é capaz de me fazer alcançar, só a indagação pode perscrutar o isolamento e o distante apenas com uma pergunta pode fazer-se solidário - mas ninguém pergunta nada. Fez-se o escuro para preservar a espera, a dormência: para o cansaço, é tarde às nove horas da noite. A luz deita-se então e forra, com pesar, um lamento que não ousa existir além da sua possibilidade. Quem poderia ver-me, pois - mesmo que sem dúvida ou curiosidade aparente, acostumada a saber-me a existência - dorme.

Eu não. Eu não durmo ainda. Esforço-me para ler, cochilo um pouco, perco. Negando-lhe a derrota, no entanto, espanto do corpo o esmorecimento com um banho frio, reativo as idéias, depois escrevo. Para que escrevo? Antes havia uma certa desculpa cínica de procurar a resposta, ordenar idéias e concluir, mesmo com pensamentos inconclusos. Hoje, cansado demais que estou para ao menos pensar ou esboçar iniciativas de raciocínio a respeito desta recorrente insatisfação de desconhecida intensidade, causa e efeito, reduzo meu esforço textual a mera masturbação expressiva, em um prazer sempre solitário mas agora, além de tudo, deliberadamente inútil.

Caso contrário, o que falaria? Se há manhãs em que a simples intenção de acordar parece despropositada e todas as horas seguintes prometem-se estéreis e brancas como minhas linhas de intenções, o que escreverei? Talvez por isso se sobressaiam aqueles instantes em que as motivações tornam-se claras e grandiosas em sua verdade natural (e digo natural não como expressão do espontâneo, mas como algo tão integrado à vida quanto o é a própria natureza, como são as verdades inexplicáveis do nascer e do morrer). Sim, tal compreensão da alegria do ver-nascer, de descobrir novos seres no mundo, seres que crescem e mudam, amores que nascem e se desfazem quando a paixão pela vida se faz maior que o estabelecido na certeza do presente, personalidades inconstantes, caminhos mal traçados, enfim, parece até que observar tudo isto - mero ato de figuração e construção ausente - já vale a pena. Saber de uma criança nascendo e, acima de tudo, perceber a felicidade que esta pequena notícia desperta em todos ao meu redor; entender-me como alguém que pode vê-la crescer; concluir que sua vida será uma dádiva e que eu, de certa forma, a testemunharei - tudo isso traz um sentido vegetal e orgânico, um forte motivo que desmente a razão e justifica, por uma lógica macroscópica e impiedosamente distanciada, a necessidade de suportar a sucessão de dias iguais.

E no entanto é, ainda, muito pouco. A opressão das horas nos faz mais egoístas e insistimos na recusa de sermos apenas coadjuvantes, narradores de histórias alheias, ainda que intrinsecamente unidas à nossa. Esgarçamos as motivações à procura de uma verdade nossa e nos deparamos com verdades misteriosas, alheias e imutáveis, e certezas que nos punem, a despeito de qualquer explicação.

Por isso pergunto-me, uma vez mais, como cheguei a este ponto. Um instante em que não me faço entender, em que precisaria abrir mão do meu último movimento de busca em nome da preservação de doces atenuantes. Por isso eu sigo, também, nesse exercício de espera: rosário de pensamentos rezado em contas, sozinho, com leves murmúrios de lábios. Rosário desfiado repetidamente com uma fé sem paixão, institucionalizada pelo hábito.

terça-feira, dezembro 21, 2004

Eu queria escrever uma história. Uma história que começasse agora, sem um grande marco inicial nem um evento decisivo, definido, característico da mudança ou determinante na quebra temporal que possibilita o início. Seria apenas um instante, mais um ponto na cronologia de fatos consecutivos e incertos, mas um ponto repleto de vontade e certeza, não a certeza idealizada do que vai acontecer, mas do que hoje é. Para este começo, não far-se-ia necessária sequer uma ação, apenas uma atitude, um olhar diferente, uma sensação que nem se sabe de quê entreabrindo leveza e vontade novas, insuspeitas, reveladoras e que sutilmente transformam.
Nessa história, alguns instantes denotariam um gosto duvidoso, talvez, já que nem tudo o que seria contado teria muito nexo. Seriam fatos improváveis, atitudes destoantes, centenas de milhares de movimentos bruscos desembocando na mais fina imobilidade, no mais rígido silêncio e quietude. Fatos sem clímax, revelações sem propósito, reviravoltas levando a lugar algum que não a manhã seguinte...
Diria ainda que meus personagens não teriam muita credibilidade; dispensariam qualquer admiração persistente, qualquer aparência equivocada, qualquer calma superficial ou suposta inteligência; a sensibilidade aguçada também seria desmentida em seus atos, na medida em que teriam preguiça, anestésicos e mesquinhez, medo e paradigmas; desmentiriam também sua refinada emoção com lágrimas piegas e crises rasteiras; rejeitariam inconscientemente seu suposto talento, sua convocada sorte, seu destino prometido; mas seriam verdadeiros.
Também digo que seriam bons. Bons, humanos e ousados, porque garanto que os construiria sem modéstia e os faria detentores de uma loucura só comprovável pela sua insistente crença nos sentimentos, na poesia, na estética, no amor, e por aquela estupidamente ingênua persistência em escavar um pouco mais sua dor à procura de algo de extraordinário em suas vidas.
E digo mais: construi-los-ia com tamanha vontade que seriam eles capazes de atitudes impensáveis. Então daria à história tons de fábula: porque eles seriam tolerantes com diferenças, espontâneos na sua forma de agir, pródigos em sua assumida imprudência, eternos em sua inquieta juventude, sinceros na sua raiva e cautelosos em todos os julgamentos. Um pouco fracos de espírito, admito. Todos meio sem vontade, alheios, e o próprio enredo de suas vidas perdendo-se, por vezes, em seus objetivos, criando significados inconsistentes, dando voltas, idas e vindas, a narrativa estagnando, de quando em quando, para logo depois se reerguer, num sobressalto.
Escancarariam suas incongruências, suas fraquezas, desmentiriam com seus atos a reconfortante porém equivocada admiração alheia e perceberiam que com isso a cada dia ficariam mais leves, porque prometeriam menos, e deles não muito poder-se-ia esperar.
Assim construiria uma história, e não seria diferente da história de qualquer ser humano. Mas seria, ainda assim, uma nova, esperançosa e urgente tentativa de pensar o indecifrável sentimento de liberdade e avulso pertencimento.

sexta-feira, dezembro 17, 2004

Recebido o resultado do segundo trabalho de Estratégia de Marketing - no qual, devo confessar, nem sequer tomei parte - considero-me, de fato, formado. Oficialmente, só com a colação de grau, em janeiro.
Expressar em uma palavra o que isso significa? Alívio, diria. Assistir às aulas há muito havia se tornado um suplício, pois considero no mínimo incômodo assistir a uma aula quando nada se espera dela, quando não há a menor avidez pelo conhecimento e pelas informações por ela transmitidas. Além disso, com o afastamento natural – e sobretudo inevitável, diria - das atividades extra-classe, não restava mais muito a prender-me àquele ambiente, durante cinco anos freqüentado e, por que não dizer, intensamente vivido.
Há, no entanto, além do alívio, uma sensação difícil de exprimir. Não apenas a sensação intraduzível proporcionada pela mudança, pelo novo, mas também uma “alfinetada” inexplicável e - principalmente agora, depois da quase confirmação de um esperado e indiscutível desfecho para o que um dia foi plano de conquista e reinício e uma inegável pretensão de freqüentar ainda os bancos acadêmicos - há, enfim, em tudo isso, talvez, uma falta de algo que não mais haverá, de um aprendizado e um convívio pelo menos por enquanto abandonados. Uma preocupação de que nos próximos meses não se aprenda tanto e as atividades sejam menos múltiplas.
Posso dizer com orgulho, no entanto, que ao formar-me deixo não apenas de ser graduando, mas, sobretudo, deixo de fazer parte de uma comunidade. E que felicidade poder dizer que pude realmente conhecer o que significa fazer parte da conhecida – e muitas vezes estereotipada, idealizada, venerada e atacada – comunidade acadêmica da UPE.
Minto: há mais que felicidade... Há um sentimento “que está cá dentro e não quer sair”...

“Mas a poesia deste momento
Inunda a minha vida inteira”

segunda-feira, dezembro 13, 2004

Resolvi “desmudar” o que já estava mudado. A partir de agora, este blog volta a se chamar Lost in solitude. Poderia enumerar diversas explicações para isso, mas os motivos se resumem a dois, e são bem simples.
Primeiro: desde que nasceu, este espaço sofreu de dupla personalidade, ora se reconhecendo como uma referência à estima pessoal por certos sentimentos anacrônicos herdados de um estado de deslocamento constante e por um apreço a valores “arcaicos” - podendo ser estes encarados como ultrapassados, importantes ou simplesmente excêntricos - ora como o sentimento solitário contido nas palavras não-compartilhadas e a expressão tímida de pensamentos inconfessados ou não-articulados em sons durante as conversas cotidianas. Ocorre que, depois da mudança de título feita há semanas atrás, tal espaço virou – para simplificar a história - uma zona! Na maioria dos outros blogs em que é mencionado, os links estão com o nome antigo, no contador t-extreme está lá o mesmo nome de antes e, o que para mim pareceu a gota d’água: minha própria pasta de rascunhos para possíveis posts futuros ainda se chama Lost in solitude! Imaginando que tripla personalidade já é um pouco demais até mesmo para um blog que tem lá seus momentos de sincera esquizofrenia, considerei sensato deixar tudo como estava antes.
Segundo motivo: eu simplesmente não me acostumei ao novo nome e achava esquisito toda vez que o via – cheio de palavras compridas, consoantes, e sei lá mais que motivos subjetivos e ilógicos que me fizeram antipatizar com ele, tão logo o publiquei no alto do meu insosso template...
Quanto a ele, ainda (o “ex-novo-nome”), tirei-o de um aforismo de Nietzche. Achei-o interessante, e como já pensava em dar novo título ao blog, por achar “Lost in solitude” um título pedante, americanizado e tristonho (embora a intenção tenha sido das melhores, como deixei claro no segundo post que publiquei aqui, explicando-o) resolvi efetivar a mudança, que agora desfaço. No entanto, pra não passar batido, deixo um trecho da relevante consideração de Nietzche:

“Assim como não apenas a idade adulta, mas também a juventude e a infância têm valor em si, não devendo ser estimadas tão-só como pontes e passagens, do mesmo modo têm seu valor os pensamentos inacabados.”

O que ele diz não é nada demais, mas ainda assim acho que estas suas palavras justificam um pouco a existência de tantos blogs cheios de rascunhos - às vezes até um pouco preguiçosos - de contos, crônicas, poesias e reflexões íntimas...

sábado, dezembro 11, 2004

Tem uma frase dita no filme "O fabuloso destino de Amélie Poulain" que eu não lembro exatamente, mas que é algo como: "Quando um dedo aponta para o céu, só um idiota olha para o dedo!"
Quanta verdade pode haver em uma única frase... E quantos idiotas existem a olhar insistentemente para um mísero dedo, por falta de consciência da real dimensão do que os rodeia ou simplesmente pela falta de habilidade em fazer diferente e buscar uma maior abrangência para sua visão.

Ou como disse certa vez um colega de trabalho, em uma das tardes no meu antigo estágio: "Não se pode ficar assim, 'aleotariamente' esperando que as coisas aconteçam por si mesmas..."

Ou ainda, já que hoje estou cheio de aspas: "Você não soube escolher - foi escolhido."

sexta-feira, dezembro 10, 2004

Today's The Day - Aimee Mann

Better pack your bags and run
or stay until the job is done
or maybe you can sit and hope
that providence will fray the rope
and sink like a stone
or go it alone

And isn't it enough - for you?
isn't it enough?

So better pack your bags and run
and send it to oblivion
where you don't look like anyone
that anyone would care about
and do what you do
'til it buries you

and isn't it enough - for you?
isn't it enough?

And baby - isn't it enough?
like major reno at the bluff
wondering aloud if help is on the way
and baby, isn't this your chance
to make a break with circumstance
isn't it enough to prove today's the day?
isn't it enough to prove today's the day?

Minha mãe que não é besta já dizia: ninguém morre de amor - o que mata é raiva e preocupação. E eu que tenho um jeito estranho de ficar preocupado, passo o dia até com uma aparente tranqüilidade, mas quando durmo... aí é que o bicho pega.
Eu, por exemplo, só descobri que tava preocupado com o vestibular essa semana, quando passei uma noite inteira sonhando que tinha um bloqueio e não conseguia fazer a redação, no primeiro dia de provas. Passei então a noite nessa agonia, vendo o tempo passar, o momento em que as provas seriam recolhidas chegar e nada de conseguir produzir uma linha sequer.
Isso acontecer não é novidade, uma vez que há tempos já sei que tenho uma coisa chamada subconsciente bastante desenvolvida, de modo que tudo o que não somatizo – o que é comum, no meu caso – fica sendo remoído sem que eu mesmo note.
O cúmulo, no entanto, foi hoje de manhã passar o tempo todo sonhando com aberturas de contas, clientes, gravatas. E eu que ri quando me disseram que nos primeiros dias de trabalho era comum se apavorar com o excesso de informações, a ponto de sonhar com o banco... E eu que ri, achando que era besteira... Só pode ser praga de chefe, isso – porque praga de chefe pega!
Mas enfim: isso explica minha pouca disposição para escrever aqui. Minha semana tem estado insuportavelmente voltada para a produtividade e o pragmatismo. Por outro lado, meus dias de folga – leia-se fins-de-semana e feriados – têm sido bem improdutivos, pois talvez pelos motivos citados acima, eu tenho estado levemente vulnerável aos efeitos do lazer despreocupado. Resultado: as noites de sexta, sábado e pré-feriados estão consagradas ao desbunde total e à filosofia de vida do original olinda style (o tal do “pode me chamar que eu vou...”) e os dias subseqüentes, por sua vez, estão consagrados ao mais deprimente malefício do álcool e do fumo: a ressaca!

segunda-feira, dezembro 06, 2004

Achei um post perdido na minha pasta de escritos, anotações e afins, no computador. Um post que na verdade é a junção de um texto escrito há bastante tempo – final de 2002, acho – e um comentário a respeito desse texto.
Trata-se na verdade de uma pequena reflexão a respeito do prazer em ouvir, em conhecer, compartilhar... Também é sobre as dúvidas que envolvem as reais intenções e motivações humanas no convívio cotidiano e, acima de tudo: sobre como um ponto de vista pode mudar à medida que se escreve um texto, a ponto de inviabilizar sua conclusão, e sobre como um coração pode amolecer enquanto se escreve, substituindo uma visão momentaneamente cínica pelo mais puro reconhecimento – que ainda hoje preservo, ainda bem – de como é bom ouvir, compartilhar, voltar-se um pouco para fora, para quem está por perto...
Segue o post "encalhado"...
Projeção

Ah, o altruísmo! A necessidade de ajudar os outros, a satisfação de se sentir bem com sua humilde contribuição para o sucesso ou a felicidade do próximo! Durante toda a nossa existência, buscamos acreditar que nossos atos são importantes e podem fazer a diferença na vida de outras pessoas. Como uma fuga à volatilidade dos nossos dias, realizamos ações que possam ter desdobramentos futuros na história de alguém. Quando interferimos no curso de uma pessoa, imprimindo a nossa marca pessoal, contribuindo com nossos conselhos, nossas idéias ou simplesmente nossa boa vontade, acreditamos que podemos, dessa forma, justificar nossa própria existência e nos sentimos mais próximos da idéia de uma coletividade, concretizando mensagens edificantes de importância para o próximo e de convivência fraterna.
A verdade é que, se somos impotentes, incapazes de solucionar os nossos problemas, tampouco temos as respostas para os dilemas e questionamentos daqueles que nos rodeiam. Compartilhamos, assim, em uma cumplicidade tácita, nossos anseios e, incapazes que somos de expressar os sentimentos que nos afligem, encontramos um consolo na simples convivência, na proximidade incômoda, na identificação recíproca e não-revelada. Sentamos lado-a-lado e, calados, agradecemos pela presença reconfortante de quem admiramos em silêncio.

...

Esse é um texto que escrevi há bastante tempo atrás, logo depois que entrei no DA, levado pela reflexão a respeito do que significava contar com os outros, ajuda-los, compartilhar experiências, momentos de aprendizado intenso, mudanças e emoções à flor da pele.
No dia em que o escrevi, no entanto, e nem lembro mais porquê, a intenção inicial era ser irônico, talvez porque naquele instante acreditasse que essa vontade desmedida de ajudar os outros, compartilhar sentimentos, falar e ouvir, era movida muito mais por uma necessidade de auto-afirmação, de sentir-se importante para os outros, de tornar-se especial naquele momento para os que indubitavelmente estavam, em contrapartida, tornando-se especiais para mim e transformando-me, do que realmente pela preocupação com o outro, com seus dilemas, dúvidas, questionamentos...
O fato é que o texto ficou interminado... Mais que isso: seu propósito inicial foi frustrado. Isto porque, à medida que escrevia, lembrava da importância daquelas pessoas, da admiração que sentia por elas, do respeito, do carinho e da gratidão que julguei - e ainda julgo - eternos. No caminho que segui na construção desse texto, desde o início até onde parei, portanto, as palavras foram mudando seu rumo, para enfim revelar nas últimas linhas que, na verdade, o que existia eram todos esses bons sentimentos não-ditos, velados, e era a espontânea convivência diária que concretizava, justamente com sua leveza, toda a profundidade dessa aproximação, desse afeto.
Conclui ao final que a busca pela auto-afirmação existia, portanto, mas o que movia aquela necessidade de contribuir para a existência dos outros era realmente aquilo que chamam de altruísmo, não no sentido irônico inicialmente pretendido, mas naquele sentido tão pessoal que pautou meu entendimento... Para mim, altruísmo acabou se revelando, pois, como o dom de reconhecer a importância dos outros em sua vida e de acreditar na urgência de ter os olhos abertos à intensidade de cada momento vivido, para cada um...
O título, assim, chamado maldosamente de “projeção” para levar a idéia de que, quando olhavam para os problemas dos outros, as pessoas acabavam apenas enxergando a si próprias, não maculou a imagem final que surgiu à minha mente e que encerrou o texto: duas pessoas que se admiravam mutuamente, sentadas lado a lado, em silêncio, mesmo que as palavras engasgassem e o pudor rejeitasse o diálogo.
Experiências coletivas sempre são difíceis, pois na maioria das vezes, mesmo que inadvertidamente, crescemos unicamente como indivíduos, ao nosso jeito, avulsos... E que choque que é de repente contar com o outro, ouvi-lo, conviver, divergir e conciliar! Mas a recompensa dos que se permitem serem seres plurais... ah!, essa, só quem teve a ousadia de encarar “a face do outro, ao meio-dia, como um enigma”, sabe o que isso significa...