quarta-feira, junho 16, 2004

Um imponente teatro, um regente, uma orquestra e a missão de executar uma sinfonia de Gustav Mahler. No entanto, se o compositor era o alvo das reverências, parecia, ainda assim, que toda aquela celebração harmônica e apaixonada reverenciava uma única mulher, que discreta e timidamente sentada ao centro do palco, aguardava o momento de sua feérica interpretação. No seu rosto, nos minutos em que lá estava, incrivelmente só, em meio a tantos instrumentistas e em sua solitária função de solista, percebo em suas feições uma expressão indecifrável. Seria nervosismo, medo, angústia? Seria a possibilidade de algo que porventura acontecesse fora dali a tirar-lhe a concentração? Poderia, em meio a tanta beleza artística e a tantos sentimentos sublimes despertados por aquela celebração coletiva da arte, aquela mulher furtar-se a banalidades cotidianas? Ou talvez, então, a responsabilidade pelo sucesso da noite, a infalibilidade que a ela cabia, naquele momento, a martirizava?
A despeito de qualquer silenciosa interrogação por parte da audiência, ela permanecia lá, ora com os olhos inquietos e os lábios nervosos, ora inexpressiva, a boca seca e vedada, como que tomada por um sentimento de indiferente presença.
Inicia-se o quarto movimento e ela silenciosamente se levanta, discreta, as pernas delicadas movimentando-se por sob o longo vestido, e as mãos, até então comprimidas ao corpo, erguendo-se um pouco, suspendendo no ar cada nota, cada letra a ser cantada. Segue-se uma impecável apresentação, e ela mostra, então, uma inquebrantável confiança conferida pelo talento, pelo domínio da técnica, pelo sentimento da música. Ao fim, depois de calorosos aplausos, retira-se triunfante, deixando-nos mais uma vez com a dúvida: o que estaria ela a pensar em seu solitário momento, sob o peso de sua responsabilidade artística?
Mais uma vez, a música cobriu-se de encanto, a sinfonia foi executada com perfeição e continuamos, todos, a apenas adivinhar quem eram aquelas pessoas e o que a arte traz de humano, falível, coloquial...
Naquela noite, a Orquestra Sinfônica do Recife tocou a quarta sinfonia do famoso compositor Gustav Mahler. O que se destacou, no entanto, foi a face enigmática de uma única cantora lírica.

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