terça-feira, outubro 05, 2004

Ao tentar escrever o post anterior lembrei, imediatamente, de uma crônica de Clarice Lispector que fala do pensamento como um jogo, uma forma de diversão ou distração, embora perigoso. Em um trecho, por exemplo, ela cita o hábito de enumerar sentimentos que carecem de um nome para serem expressos:

“Então comecei uma listinha de sentimentos dos quais não sei o nome. Se recebo um presente dado com carinho por pessoa de quem não gosto – como se chama o que sinto? A saudade que se tem de pessoa de quem a gente não gosta mais, essa mágoa e esse rancor – como se chama? Estar ocupada - e de repente parar por ter sido tomada por uma súbita desocupação desanuviadora e beata, como se uma luz de milagre tivesse entrado na sala: como se chama o que se sentiu?”

Digo que me lembrei desta crônica porque foi assim que me percebi ao tentar escrever este último texto que postei: como se estivesse diante de um destes sentimentos sem nome, de idéias que não poderia explicitar. Talvez por isso a sucessão de períodos intermináveis, a desarticulação de idéias, o resultado um pouco vago e a certeza de que, em alguns pontos, não falei bem o que queria. Pensei ainda em “guarda-lo até amanhã”, para relê-lo com olhos de leitor e ver se ele não estaria ininteligível. Mas decidi no entanto posta-lo aqui, logo, pra me livrar de algo que desde algumas semanas atrás considerei importante expressar.
É possível que tenha existido algum sentimento ruim que motivou este meu texto, mas, se houve, não foi aquele tipo de piedade humilhante ou de compaixão fundamentada na pretensão da superioridade, e sim a inveja por uma força e uma humildade que não tenho e a decepção pela insensibilidade de tantos, como no momento descrito pude constatar. Além disso, houve a tristeza, também, pela própria irresponsabilidade que me faz consumir inadvertidamente, acho, os frutos deste tipo de trabalho árduo e dessa busca diária da sobrevivência. De resto, nada de distanciamento. Como disse, para mim tratam-se de realidades indistintas.

...

Esta crônica que mencionei está no livro “A descoberta do mundo”, de Clarice, que reúne (em ordem cronológica) as contribuições semanais da escritora ao Jornal do Brasil, no período de agosto de 1967 a dezembro de 1973. O livro traz, portanto, uma grande quantidade de textos (mesmo!, são quase 500 páginas) em forma de crônicas, pensamentos, comentários, reflexões, pequenos contos... É engraçado pensar que, pela ordem cronológica, a periodicidade, a abordagem de acontecimentos pessoais e o comentário a respeito dos fatos da época, bem como a própria variedade de estilos, o teor e a leveza dos textos, é como se estivéssemos diante de um... blog! hehehe Isso mesmo. Se Clarice estivesse viva hoje e resolvesse ter um, acho que seria mais ou menos isso que iria sair... :p
Acho que essa comparação com um blog dá uma boa idéia do teor dos textos, neste livro. Não há nada tão elaborado ou particularmente genial (pelo menos até agora) como podemos encontrar a cada página dos seus romances - o que é óbvio, em se tratando de textos para uma coluna de jornal, com prazos semanais de entrega e uma linguagem mais “fácil”.
O talento dessa escritora, no entanto, se revela a cada página, na subjetividade com que trata temas tão factuais e no surgimento de reflexões sensacionais a respeito de questões às vezes tão comuns. Um bom exemplo é a crônica de 1967 em que Clarice fala a respeito do primeiro cosmonauta a ir ao espaço:

“- Para vermos o azul, olhamos para o céu. A Terra é azul para quem a olha do céu. Azul será uma cor em si ou uma questão de distância? Ou uma questão de grande nostalgia? O inalcançável é sempre azul.
- Se eu fosse o primeiro astronauta, minha alegria só se renovaria quando um segundo homem voltasse lá do mundo: pois também ele vira. Porque “ter visto” não é substituível por nenhuma descrição: ter visto só se compara a ter visto. Até um outro ser humano ter visto também, eu teria dentro de mim um grande silêncio, mesmo que falasse. Consideração: suponho a hipótese de alguém no mundo já ter visto Deus. E nunca ter dito uma palavra. Pois, se nenhum outro viu, é inútil dizer.”

4 comentários:

Patricia Leal disse...

Fábioooo, incrível como eu tive essa mesma impressão que você, de que parece que a gente está lendo um blog ao ler Clarice :D na verdade, às vezes a leitura me parecia até mais intimista do que a de um blog, me sentia por dentro da alma dela (muito curioso né?! :P)

e quanto ao último parágrafo do seu post...nossa, chega fiquei com falta de ar :P ô mulher pra me deixar sem ar!! hauhauahaua
maravilhoso!! adorei mesmo :D

bjão!! =)))

fabio disse...

É, na verdade essa impressão eu só tive mesmo com esse livro, por se tratar de uma coletânia de crônicas e reflexões... Os romances realmente parecem algo muito mais íntimo, sei lá... Otto Lara Resende uma vez falou, sobre Clarice:"Você deve tomar cuidado com Clarice. Não se trata de literatura, mas de bruxaria." Acho que é por aí mesmo... A mulher é o cão. :p Bjo.

Anônimo disse...

necessario verificar:)

fabio disse...

quem é você, anônimo??