terça-feira, março 04, 2008

quando a imagem é demais

Já há algum tempo, os noticiários foram tomados pelas imagens de Ingrid Betancourt no cativeiro, supostamente filmadas em outubro do ano passado e veiculadas com o intuito de atestar sua existência, provando que ela ainda está viva. Mal acompanhando os noticiários nestes últimos tempos, na ocasião eu as vejo com freqüência - dada a forma exaustiva com que foram divulgadas - e quando isto acontece, sou tomado por certo incômodo: entendo que preciso inteirar-me do que acontece, formar opiniões a respeito, e que ali está posto algo muito sério que merece uma observação cautelosa e atenta. No entanto, não consigo. Não porque seja mais forte a displicência inicial com que voltei o olhar à tela antes de deparar-me com o vídeo e perceber a urgência do assunto. Mas porque, de antemão, senti que nenhum esforço para processar o que me atingia pareceria suficiente.

Algum tempo depois, já quando o tema assume uma nova forma - do problema crônico e já assimilado das guerrilhas, passando pelo reaquecimento do debate ocasionado pelas novidades nas negociações para libertação de seqüestrados, até a recentemente deflagrada crise sul-americana, cujo estopim foi a violação ao território estrangeiro do Equador pelas forças oficiais colombianas - retomo o assunto de uma forma, suponho, um pouco menos preguiçosa e irresponsável. Diante dos desdobramentos, vou aos jornais, tento ler notícias, opiniões, análises a respeito, e buscar algo que de fato me envolva ao tema e me distancie do odioso auto-glorificante acúmulo de informações. Porque não, nunca devoro atualidades apenas para me gabar de ser um sujeito bem-informado - o que, se por um lado, não é motivo de orgulho nenhum, uma vez que não são poucas as vezes em que ignoro discussões e fatos notáveis, pelo menos é uma atitude que considero um pouco mais espontânea. Nesse fluxo histérico de informações, dou-me ao luxo (e normalmente sem muito sentimento de culpa) de simplesmente dizer que não tenho condições, no momento, de opinar sobre o que se passa.

Assim, se retomo este assunto e busco inteirar-me é porque sinto que algo aqui me diz respeito: não sei bem o que, nem como, mas acredito que algo, de algum modo, me afeta. Ou melhor, eu sei: é a imagem de Ingrid Betancourt, que ficou calada dentro de mim mas não se neutralizou; falou mais alto de novo, em seu silêncio, e me causou incômodo. Não por acaso, então, voltei a ela: precisei ver de novo o vídeo, talvez buscando uma forma de me aproximar emocionalmente do assunto e assim ser menos cínico, menos enciclopédico na minha vontade de entender.

Mas ainda assim é difícil. Vendo-o, foi impossível não lembrar daquilo que li sobre a imagem traumática. O trauma, para Roland Barthes, seria aquilo que interrompe a linguagem e bloqueia a significação. No que se refere especificamente à imagem fotográfica, ele diz: “a foto-choque é, estruturalmente, insignificante: nenhum valor, nenhum saber, em última análise, nenhuma categorização verbal pode influir sobre o processo institucional da significação. Poderíamos imaginar uma espécie de lei: quanto mais direto é o trauma, mais difícil a conotação; ou ainda: o efeito ‘mitológico’ de uma fotografia é inversamente proporcional a seu efeito traumático”.

Essa idéia de bloqueio diante de uma imagem traumática, por sua vez, me fez lembrar do filme Persona: a atriz Elizabeth Vogler, internada em um hospital, assiste diante da televisão à imagem de um homem ateando fogo ao próprio corpo como forma de protesto. Diante do choque de testemunhar aquele corpo em chamas, da força das imagens e da radicalidade do protesto, a atriz, estarrecida, contempla a cena, imóvel. Diante deste horror a arte emudece, o cinema não tem meios de processá-lo, assimilá-lo, mostrando-se impotente.

É possível no entanto que a citação de Barthes esteja bastante deslocada. Porque me parece que não é o caso de ter sido bloqueada a significação; muito pelo contrário, o que se percebe é a supercodificação do visto por uma infinidade de discursos que possuem motivações políticas diversas. Assim, creio que não era exatamente sobre isso que Barthes falava. Mas tomo a liberdade para a apropriação indevida, para a des-(ou re)contextualização, como forma de expressar um pouco a dificuldade de, a despeito da espetacularização a que a imagem foi submetida, significá-la, dar conta de tudo o que ela representa.

Porque se a imagem de Ingrid em seu cativeiro choca, talvez seja isso o que a torna tão difícil de assimilar. Diante dela não há palavras, não há análises de conjuntura, não há opiniões, palpites ou arrebatamentos que abranjam o horror que ela evoca. Se, para os familiares, vê-las deve ser quase insuportável, para qualquer pessoa que por um minuto coloque-se no lugar de Ingrid ou tente enxergar nela um familiar querido (mas é exercício fadado ao fracasso, é impossível imaginar algo assim!), enfim, para pessoas que se permitam essa sensibilização, não parece exagero associar essa imagem à idéia de um trauma. Diante dela, não há sentido completo possível. A palavra seria sempre insuficiente. E a racionalização, cínica.

Arriscaria, então, dizer que estaríamos neste caso diante de algo como o Real inapreensível de que fala Slavoj Zizek, filósofo esloveno. Qualquer tentativa de assimilá-lo mostra-se quase impossível, porque o entendimento sempre se dá no nível simbólico, da linguagem. Ou, nas palavras de Zizek: este Real, “exatamente por ser real, ou seja, em razão de seu caráter traumático e excessivo, não somos capazes de integrá-lo na nossa realidade (no que sentimos como tal), e portanto somos forçados a senti-lo como um pesadelo fantástico”. E não seria isto o que eu mesmo estaria tentando fazer aqui: possibilitar a conotação, estabelecer mediações simbólicas, mitológicas para tornar a imagem de Ingrid assimilável?

O fato é que não pude ignorar, e fui à rede saber um pouco mais.

Um breve panorama na internet sobre a cobertura no Brasil nos dá uma idéia da disputa ideológica que se dá em torno dos fatos. Resumindo o estado dos argumentos de forma bem grosseira (neste caso, intencionalmente redutora, para tentar emular a grosseria com que alguns articulistas têm recortado e exposto o quadro): enquanto sistemas de mídia direitistas enfatizam aspectos como o uso da palavra guerra por Hugo Chávez como mais um mecanismo e recurso para a caracterização do presidente venezuelano como um louco paranóico e irresponsável - capaz de colocar sob ameaça todo o subcontinente latino-americano - colunistas como Emir Sader, por sua vez, jogam os holofotes sobre as ações conspiratórias do governo de Uribe na Colômbia e suas relações com o poderio norte-americano. Enquanto isso, Fidel Castro já nos informa ouvir soarem as trombetas da guerra...

Diante de tudo isso, penso com certa irritação em como muitos dados são manipulados sob a forma de opiniões anti-chavistas ou anti-estadunidenses. Penso com ainda mais irritação em como as pessoas ainda supõem, convenientemente, haver explicações fáceis para uma questão tão complexa quanto a do narcotráfico, das guerrilhas e das disputas políticas na região. O que eu não consigo sequer pensar é na existência provável de pessoas que ponderem, considerando justificável que vidas como a de Ingrid Betancourt sejam relativizadas em nome de qualquer causa bem intencionada que pretenda tornar a vida humana minimamente mais digna. Porque o que estes fatos lamentáveis denunciam é a barbárie, e para ela não existem justificativas fáceis ou antagonismos claros. Sem querer soar grandiloqüente, diria: somos todos responsáveis.

Eu, como há muito já deixei de me entusiasmar com grandes causas gloriosas e messiânicas e comecei a recusar o jogo das respostas fáceis – no qual as pessoas acreditam de modo a tornar (para o alívio de todos) o mundo mais ordenável, inteligível e explicável; eu, que aprendi a assumir que não entendo, que muitas vezes não sei o que dizer e que a experiência me transpassa (ou por vezes parece que me contorna, me dribla), apenas tento responder ao alto impacto daquilo que vejo e que, somado às mensagens lingüísticas que o acompanham, torna-se simplesmente demais, um excesso que não consigo absorver.

Sim, porque não temos somente o vídeo: temos o relato. Ingrid Betancourt não come, não tem forças, está esgotada física e emocionalmente, seus cabelos caem aos montes, seus ossos já se tornam visíveis sob a pele e acredita-se que tenha hepatite do tipo B (e a partir daí imaginamos como podem estar os outros seqüestrados, dos quais não temos muitas notícias). No vídeo, sua cabeça está sempre voltada para baixo, seus braços caídos sobre o corpo, imóveis, e seu semblante triste, muito triste e desolado(r)! São cinqüenta e cinco segundos de um silêncio pungente, indescritível, em registros feitos por uma câmera perscrutadora que vai se aproximando do rosto de Ingrid até quase o limite da distorção. E é tudo tão forte e impossível, e é tudo tão terrível que nos comove.


Para ver:

Vídeo divulgado pelas Farc com as imagens, aqui.

E para que não reste dúvidas de que perplexidade e suspeita não se confundem com omissão ou descrédito a qualquer tentativa de posicionamento político concreto, coloco também o link para um vídeo que trata das obscuras relações entre Uribe, Estados Unidos e narcotráfico. Note-se que a postura lamentável do presidente colombiano no que diz respeito às negociações para libertação dos seqüestrados torna-se ainda mais ambígua diante destas informações. Disponível em espanhol, aqui.


Para ler:

O óbvio e o obtuso, de Roland Barthes.

Bem-vindo ao deserto do real, de Slavoj Zizek.

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