quarta-feira, janeiro 05, 2005

Acordei hoje cedo, às sete da manhã, já meio sem sono, mas resolvi dormir um pouco mais. Coloquei o despertador para as nove e cultivei, ainda assim, o velho vício dos “cinco minutos a mais”. Tolice, a minha. Não pode estar certa essa idéia de que o único motivo para acordar seja uma hora marcada e um compromisso. A prova dessa tolice veio ao finalmente levantar.
Ao longo dos anos, as pessoas incorporam à sua vida uma série de hábitos, pequenos rituais e íntimos prazeres que, se são decorrentes de suas vivências, nem por isso tornam-se mais explicáveis. Talvez o que explique mesmo tais particularidades é o fato de que a “máquina do mundo”, como no poema de Drummond, se abre e se mostra em momentos diferentes para cada um. Porque hoje, quando acordei, a sensação arcaica e indizível proporcionada pela chuva me deixou à janela por uns dois minutos, e não há nada que explique porque ela sempre muda não apenas meu humor, mas todo o meu estado de espírito.
Nem sei onde tudo começou. Na cidade de onde vim não chovia com muita freqüência, o que já atribuía ao fato um certo ineditismo. A temperatura também não era das mais agradáveis, e se há pessoas que desfrutam de um clima agradável o ano inteiro, há outras que se sentem convidadas a sair à rua e dar um passeio unicamente para aproveitar o “friozinho”.
Não é querendo dar uma de sertanejo fugido da seca, não, mas na rua do limoeiro a chuva não chegava tão fácil, e havia meses em que era quase um acontecimento. Daí, no mercantil do meu pai, à porta, via-se a água descendo ladeira abaixo, embolando-se toda, arrastando pedras do calçamento, com barulho, forma e movimento de pequeno riacho. A maioria das crianças se espojava na água, deitando-se na “correnteza”, tomando banho nas bicas das casas, correndo, abrindo a boca e deixando a água entrar – e tudo era saudavelmente divertido. Outros, na maior parte das vezes, jogavam pedrinhas e caroços de feijão ou milho para verem a superfície da água se estilhaçar, ou então depositavam pequenos objetos planos que desciam como barquinhos ladeira abaixo – para onde iam? Eram vários os objetos lançados, mas nada comparado à atitude revoltante de alguns adultos, mal-educadamente jogando sacos de lixo para serem levados pela correnteza – ação quase sempre revoltante para mim, a não ser quando me permitia acreditar que eles tinham a mesma ingenuidade de não pensar no destino daquelas águas – porque, àquela altura, eu ainda pensava que elas corriam para sempre. Ou melhor, não pensava nada: não havia preocupações ambientais nem conhecimentos sanitários - só alegria de uma criança quando nada pergunta. Tudo, pois, em alguns momentos parecia existir, simplesmente, a despeito de qualquer relação de causa e efeito.
Quando a chuva era à noite, então, deitava-se com o barulho das águas, e os meninos do interior que eram, no entanto, já urbanamente frustrados pela sucessão pouco atraente de casas, ruas e nada mais, podiam, finalmente, esquecer onde estavam e dormir jurando que ouviam os sons de um pequeno rio. Nessas horas, de olho fechado, falta de saneamento era beleza natural.
Hoje, ainda, deitar-se ao som da chuva torna as noites mais agradáveis, do mesmo modo que acordar com seus sons, desfrutar da temperatura agradável e sair à rua em meio a uma paisagem subitamente modificada pela água dá aos dias um aspecto que só pode ser explicado – mesmo assim de forma bastante pobre – como um inconfundível ar de feriado. Mais que isso: com a chuva, a vida parece envolver-se em mistério, densidade e leveza. Pois coisas estranhas acontecem o tempo inteiro: quer chovam sapos, magnólias ou águas com sabor de passado.

5 comentários:

fabio disse...

Carina, não tinha reparado nisso. hauhauhauahua
Ainda bem que você me avisou: vou começar a prestar mais atenção nesse número, porque as evidências indicam que eu realmente estou sendo seguido! :p
Quando as pessoas lêem seu blog acontee isto com elas, é? hehehhehe
Bjo.

Anônimo disse...

=:0
Lindo, Balão! Sério... Não conheci esse lado como vc (o lado interiorano), mas enquanto lia, consegui me transportar pra um lugar onde acredito que algo muito parecido aconteça...
Beijoon, Balloon!!!
:*
PS: Depois vou dar ns puxões de orelha no senhor. Tirando onda das minhas funções da área de saúde, né? Hunf :/ :P Heheh

fabio disse...

"Funções na área da saúde"? hauhauhauhauhaa. E eu tenho lá culpa se você é uma menina versátil? :p Soube que você tá fazendo tudo direitinho... Quem diria, hein? Deve ser o instinto materno aflorando! ahuhauhauhaua. Bjo.
P.S. Tu comenta como "anonymous" só de pirraça, né? Não mudo o sistema de comments e pronto! Hunf. Já me acostumei a ele. :/

Patricia Leal disse...

acho que já se torna repetitivo eu vim aqui elogiar seu textos, mas dizer o quê depois de ler uma coisa como essa?! que fabuloso! nossa, e é fabuloso mesmo esse Fábio!! :D hahahah (juro que não foi intencional, a princípio, mas só depois lembrei do nome do filme =P)

mas falando sério, me sinto uma privilegiada por ter acesso a seus escritos. as editoras não sabem a pérola de escritor que estão perdendo! :) espero que um dia te descubram.

bjão!!! :D

Anônimo disse...

Olá Fábio,

Fiquei impressionada - você escreve muito bem! Fora o blog, tem algo publicado?

Abracos,

Heloisa