quinta-feira, setembro 08, 2005

Terminei, enfim, o livro de Joyce. Inalcançável? De modo algum. Hermético? Um pouco. O fato é que demorei a me envolver, a me identificar com a história.
Em todos os bons romances, no entanto, parece haver aquele momento que nos derruba, nos puxa para dentro de sentimentos alheios, tornando-os nossos, também, graças à possibilidade da identificação.
Esse trecho do livro me pegou, e não me canso de lê-lo:

(...)

“Escancarou a porta sem tramela do alpendre e cruzou a soleira desconjuntada da cozinha. O grupo dos seus irmãos e irmãs estava sentado em volta da mesa. O chá estava praticamente no fim, e apenas a última água a ferver posta sobre ele restava ainda ao fundo do pequeno bule e dos potes de geléia que faziam as vezes de xícaras. Restos de pão açucarado, em crostas e pedaços, escurecidos pelo chá em folha que caíra sobre eles, jaziam espalhados sobre a mesa. Pingos de chá, aqui e acolá, sobre a tábua da mesa, e uma faca, com cabo quebrado de marfim, esquecida dentro de um moedor estragado.
O triste reflexo, cinza e azul, do dia morrendo, entrava pela janela e pela porta aberta, alisando aos poucos súbito instinto de remorso no coração de Stephen. Tudo quanto a eles fora negado fora dado, sem razão, a ele, que era o mais velho; mas o lânguido clarão da tarde não mostrava em seus rostos traço algum de rancor. Sentou-se junto deles à mesa e perguntou onde estavam o pai e a mãe. Um respondeu:
- Sairamboro paraboro procuraroboro casaboro.
Mais outra mudança! Um rapaz chamado Fallon, no Belvedere, mais de uma vez lhe tinha perguntado, com uma risada maldosa, por que era que se mudavam tanto. Rugas de raiva tinham sombreado a sua testa ao ouvir de novo a risada escarninha desse curioso.
Stephen perguntou aos irmãos:
- Mas por que é que vamos nos mudar outra vez, posso saber?
- Porqueboro oboro proprietárioboro nosboro queroboro botaroboro paraboro foraboro daboro casaboro.
A voz do irmão mais novo, lá do lado afastado da chaminé, começou a cantar ‘Quanta vez na noite calma-a-a’. Um a um os outros começaram a acompanhar até que um coro cheio de vozes estava cantando. Cantariam assim horas e horas, melodia após melodia, canção após canção, até que a última claridade pálida morresse ao horizonte, até que o crepúsculo viesse com suas primeiras sombras, até que a noite caísse.
Ficou esperando por uns momentos, antes que também começasse a ária com eles. Estava escutando, com dó de espírito, o acento agudo de cansaço que havia por detrás de suas fracas e frescas vozes inocentes. Mesmo antes de se prepararem para a jornada da vida pareciam cansados, já, do caminho.
Ouvia o coro de vozes na cozinha ecoar e multiplicar-se através de uma infindável reverberação de coros de infindáveis gerações de crianças; e ouvia em todos os ecos um eco também dessa nota persistente de fadiga e de pena. Todos pareciam cansados da vida antes mesmo de entrarem nela. E se recordava que Newman tinha ouvido essa nota também nas linhas quebradas de Virgílio ‘dando expressão, como a voz da própria natureza, a essa pena e a esse cansaço na esperança ainda de melhores coisas que fossem a experiência de seus filhos e em todos os tempos.’”

Retrato do artista quando jovem, James Joyce

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