segunda-feira, dezembro 29, 2008
pra essa passagem
"Uma utopia: não esquecer nada."
quinta-feira, dezembro 25, 2008
quarta-feira, dezembro 24, 2008
mais uma vez, finais
A simbologia natalina surge como um elemento que se soma ao acúmulo de indícios de um final de ciclo que culmina no reveillon. Sim, porque se não sou religioso, mantenho minha crença no calendário cristão-ocidental e penso a minha vida em anos, embora esses anos nem sempre terminem em 31 de dezembro e comecem no dia 01 de janeiro. (O ano passado, por exemplo, começou em março, e o meu 2008, tal como o vivi até então, suspeito que tenha terminado no dia 29 de novembro, quando a pós teve um churrasco de confraternização que me pareceu também de despedida e Lavínia fez, no mesmo dia, o que anunciou como a última – pelo menos por enquanto – das muitas e já célebres farras no seu apartamento).
De repente é isso que está em jogo nesse natal: uma série de despedidas, últimas vezes, conclusões e também de mudanças significativas nos termos em que os afetos e as amizades são vividos e sonhados cotidianamente. Série que, em contrapartida, não viu ainda o anúncio de nenhuma estréia – embora os mais otimistas não percam tempo em lembrar que estaríamos sempre começando.
Mas é a necessidade de inventar estes tais começos aquilo em que eu sempre acreditei. É a sua natureza inventada – e, como tal, nem um pouco espontânea – o que fica mais claro justamente durante esses tais períodos festivos. Indo mais longe, é na própria necessidade de construir climas, arquitetar humores e contextos propícios para inspirar a invenção de planos e mudanças que eu de fato acredito. Os mais empolgadinhos podem não entender, mas é que eu não nasci com uma disposição inextinguível para a vida: ou eu me cobro essa procura por algo interessante, por uma motivação que ocupe minhas horas, ou eu começo a achar tudo irremediavelmente tedioso.
Em 2002, quando eu tinha começado a estagiar e, portanto, não podia viajar no natal, eu ficava em um momento drama ouvindo Joni Mitchell (“I wish I had a river I could skate away on...”) e achando ruim não poder visitar minha família. Acho que é porque eu me sentia ainda muito sozinho em Recife, na época, e a ceia em casa foi a minha melhor fantasia de compreensão e acolhimento perdidos cuja perda eu poderia lamentar. Hoje eu vejo que não me sensibilizam muito, afinal, essas pequenas ocasiões familiares. Um dia, provavelmente. Por enquanto, para além do ritual, o que me interessa é onde, com quem e em que circunstâncias eu estabeleço esse marco que é o fim e o início de qualquer coisa. Mais ainda, interessa-me que as circunstâncias sempre mudem, assim como as pessoas, os lugares. Se em algum momento a gente sempre precisa estabelecer cegamente um valor capaz de reger nossas escolhas, há tempos eu já optei pela mobilidade: pra não criar lodo e talvez porque, como está todo mundo sempre passando, saindo, chegando, antecipar um movimento é sempre uma forma de não ficar para trás.
Essa fantasia de passagem e esse modo de vida precário, mesmo quando o dia-a-dia denuncia certa fixidez e conforto, são a recorrência de um clima propício, um humor inventado, uma subjetividade mais que um conjunto de ações concretas, uma iminência de partir, uma forma transitória de perceber os encontros e transformar isso em afeto (“I drew a map of Canadá, Oh Canadá!, With your face sketched on it twice...”), história que se conta e, ao ser contada, ganha sentido.
Para ouvir (Isso de postar músicas aprendi com Aninha :p):
quinta-feira, dezembro 11, 2008
sexta-feira, dezembro 05, 2008
diretrizes acadêmicas
Coisas a evitar:
- Msn (de preferência acessá-lo apenas uma vez ao dia, por tempo limitado e em horário a combinar);
- Música eletrônica, ou melhor, qualquer música que seja dançante, muito alegre ou excessivamente triste;
- Prévias de carnaval;
- Sessões concorridas na Fundaj (priorizar segundas exibições);
- Saídas única e exclusivamente com o intuito de encher a cara;
- Amigos que estejam no clima "beber, cair e levantar";
- Pessoas excessivamente indóceis – sobretudo quando já se é naturalmente indócil – e também pessoas muito dúbias, já que estas demandam de nós um longo tempo para pensarmos sobre quais seriam as suas reais intenções;
- Fazer a social (i.e. Central).
Coisas recomendáveis:
- E-mails, que sempre trazem notícias sobre o mundo exterior e sobre os procedimentos do programa de pós-graduação (embora por eles também costumem chegar muitos convites e avisos de festas);
- Música erudita e também jazz, sobretudo o contemporâneo, ou, de um modo geral, músicas sem vocais que possam ser ouvidas enquanto se escreve;
- Filmes, como sempre, e em especial os de Godard, Bergman ou os antigos de Woody Allen (filmes de Tarantino, por sua vez, são desaconselháveis, assim como os muito românticos, i.e. Wong Kar-Wai, ou aqueles típicos filmes de jovens curtindo a vida livremente e sem amarras);
- Conversas com Mari - ao telefone ou pessoalmente, e se possível uma vez ao dia - para colher suas orientações indispensáveis sobre métodos de estudo;
- A favorita, porque ninguém é de ferro.
Além desses pontos básicos, acrescento que na geladeira deve haver comidas prontas e rápidas (já que períodos de estudo intensivo costumam ser, pelo menos para mim, momentos de emagrecimento vertiginoso), mas nunca, sob hipótese alguma, devem ser mantidas cervejas em estoque, pois são um palitavo fácil e perigoso para os momentos de solidão e crise criativa.
Nas perambulações urbanas inevitáveis, feitas para espairecer, devem-se evitar as ruas mais animadas, assim como qualquer contato visual com focos de alegria simples e descomprometida, como os espetinhos de Afogados ou os bares da Boa Vista na sexta à noite. A propósito, está terminantemente proibido passar por Afogados ou pela Boa Vista nas sextas à noite. A visão de pessoas simples em surtos de diversão eufórica e barata pode levantar dúvidas acerca do real sentido da existência, dúvidas estas que são muito improdutivas para quem precisa escrever um trabalho acadêmico. Afinal, sempre se pode terminar achando que a teoria não serve para nada, que o ser humano precisa de muito pouco para se sentir bem e que a felicidade verdadeira está em um aglomerado de barracas de espetinho, isopores de cerveja e carrinhos de cd pirata.
O uso do chá preto e do café é recomendado. Quanto ao cigarro, deve-se recorrer ao mesmo em doses terapêuticas, apenas em casos de extrema necessidade, angústia, ansiedade acadêmica ou depressão crônica. O ideal é procurar seguir a antiga resolução: não fumar em casa, apenas na rua.
E se até então ficamos no nível das recomendações moderadas, algumas outras coisas, por sua vez, estão expressamente proibidas até o fim desse período conturbado.
Proibições radicais:
- Youtube: todas as indicações, sugestões de vídeos, etc, serão devidamente acrescentadas à lista de favoritos e vistas somente depois da segunda quinzena de janeiro;
- In rainbows, do Radiohead: a melancolia que esse cd alimenta é altamente improdutiva, principalmente no que se refere aos B-sides;
- Inventar posts muito longos, como este, ou que exijam qualquer tipo de elaboração. A geração de caracteres é preciosa e deve estar totalmente direcionada para fins de produtividade acadêmica. Mentalizar a quantidade de laudas a escrever serve como recurso para desencorajar rompantes criativos canalizados para lugares indevidos, como este blog.
Por fim, informo que as listas e recomendações serão constante- mente atualizadas e adaptadas, à medida que eu for lembrando novos itens a serem discutidos e possa testar, na prática, quais proibições funcionam e quais são puro delírio. As resoluções, claro, passam a valer imediatamente após a sua publicação.
segunda-feira, dezembro 01, 2008
o efeito Katrina
“– O que acontece – disse a Maga, remexendo o leite que estava sobre o fogão – é que a felicidade só pertence a uma pessoa e, em contrapartida, a desgraça parece ser de todos.”
O jogo da amarelinha
É sempre assim. Aconteceu de novo - dessa vez não tão longe, foi logo ali no sul do país - mas foi o suficiente para lembrarmos que toda segurança com que nos cercamos é pouca e pode esvair-se rápido, e que as necessidades podem ser bruscamente redimensionadas pelo advento de novas circunstâncias. A noção de catástrofe, nesse sentido, pode não ser tangível e generalizada, mas instalar-se em formas bem pessoais e subjetivas de perceber os estragos.
De minha parte, olhando para trás eu acho até bastante admirável o fato de que tudo tenha dado mais certo do que eu poderia supor. De um jeito ou de outro, cronologias, oportunidades e escolhas sempre se ajustaram em um timing certeiro que até hoje me livrou do desamparo. Não é recorrendo a um histórico, então, que eu conseguiria explicar a sensação de estar sempre na iminência de uma grande derrocada. Como se a tranqüilidade nunca fosse tranqüilidade de fato porque estaria corrompida desde a origem pela certeza de que o que se anuncia é um período subseqüente que seria o da grande falta. Como se eu nunca pudesse descansar do imperativo de me preparar para o que vai dar errado – sendo esse algo sempre o momento imediatamente posterior.
É essa eterna iminência de uma coisa sem nome - que, indefinida, seria no entanto a mais provável, a mais certa - aquilo que instaura em uma vida sem grandes sobressaltos a estranha lógica da futura vítima do desastre que, prevendo a devastação, tem que manter o olho na despensa, ao mesmo tempo em que prepara os ânimos para lidar com a passagem de uma vida normal, narrada pela lógica da acumulação, para o tempo da excepcionalidade, quando as necessidades são completamente redimensionadas pelas novas circunstâncias da crise.
Claro que me refiro aqui não tanto a uma questão material. Mais precisamente, é como se o que estivesse em jogo fosse a dificuldade de combater um desagradável efeito dessa espera: as alegrias, vez por outra, vêm rasuradas por um tom melancólico que permeia o todo. Ela, a alegria, fadada a acabar, afastada para longe pela irrupção de um contexto desfavorável que viria logo em seguida. (Mas não se pode dizer isso de toda alegria? Fadada a acabar? Tomada como desmedida, no entanto, ela acaba sempre um pouco antes).
Se as conseqüências são sobretudo emocionais, não deixam no entanto de apresentar certas marcas concretas em elementos bastante específicos da rotina. Na roupa talvez esteja o exemplo mais claro disso: é notável que, mesmo fazendo visitas periódicas ao armário a fim de identificar roupas a serem doadas, eu jamais consiga me desfazer de algumas peças que eu mesmo consideraria inutilizáveis em qualquer circunstância normal. Isso porque as circunstâncias que irão surgir parecem sempre pouco mensuráveis, e o critério para definir o que serve e o que não serve, mera questão de contingência. Talvez aí seja possível encontrar, inclusive, uma pista para o hábito que muitas pessoas possuem de acumular coisas “inúteis”; uma chave para entender a dificuldade em desfazer-se de objetos, utensílios e mesmo informações cuja razão de ser ali na nossa vida já não parece mais tão clara.
Tudo isso, evidentemente, é muito mais psicológico que factual, embora na incidência de um acontecimento concreto o pesar venha reforçado pelo fato de que cada mau momento alheio ou desordem coletiva são observados, mesmo que de longe, com boa dose de receio. Tal como esponjas, assimilamos – pela lógica cristã ou das probabilidades – a convicção de que ainda chegará a nossa vez. Estranha certeza, aparentemente infundada, que vem por sua vez alimentar uma postura controversa: diante da ameaça, valoriza-se não tanto o esforço para a preservação, mas o advento mesmo da destruição como princípio. (O que talvez possa ser dito de outra forma: uma insegurança cujo mal estar é acompanhado não de um esforço no sentido da estabilidade, mas de um impulso para afrouxar o punho e perder o pé).
A cautela seria, aí, não tanto precaução, mas adiamento. Contornando os fantasmas de furacões, ciclones e enchentes – a vertigem desse Katrina, daquele Mianmar devastado – levantam-se acampamentos transitórios, refúgios sem cúmplices para o desastre que é sempre postergado por uma nova convergência, pelo novo timing que vem deslocar para um tempo futuro a iminência da catástrofe.
terça-feira, novembro 25, 2008
quinta-feira, novembro 20, 2008
a palavra improferível
Refiro-me a um registro que pode soar piegas ou lacrimoso, mas que considero importante. Eu penso, de forma muito recorrente – e evocando um certo senso de sobrevivência que é atiçado pelos momentos de maior fragilidade – que algumas pessoas estão sempre buscando (ou inventando) uma forma de se salvarem. E é nesse sentido muito preciso que eu tomo aquela linha de Clarice tão exaustivamente repetida – como tudo dela, aliás, nesses tempos –, que define o ato de escrever como meio de “abençoar uma vida que não foi abençoada”.
O que mais me chama a atenção nessa passagem é menos o belo e conciso lugar que ela concede à escritura, mas a idéia mesma de que existem vidas que foram e continuam sendo, ao longo do tempo e em maior ou menor grau, malditas. Vidas pouco glorificáveis às quais não é dada nem ao menos a possibilidade de tornar nobres e eloqüentes os seus pequenos desalentos. E, mesmo tendo tanto apreço pelas imagens, reconheço que por vezes as formas da escrita - não apenas a grande literatura, mas até as mais pequenas notas - me parecem o melhor lugar para se digerir e ressignificar a feiúra de problemas pouco "estetizáveis". Não apenas a escrita, repito, mas toda construção de um universo próprio - ou constituição de um mundo, como diria Deleuze - que em algum sentido termina por exigir um recolhimento ou, mais precisamente, uma re-alocação (como um mover-se em direção a esse vão pouco discernível dos que não são benditos).
Mas se a escrita é o lugar possível para a palavra que não se diz em voz alta, que não se mistura nem se dilui – sendo o meio permeável à palavra grotesca, ridícula -, não é, porém, o único. Também a amizade aponta esse caminho não-messiânico da salvação onde o que está aquém ou além da aparência - mas sempre em disjuntiva em relação a esta - pode ser proferido com sinceridade e confiança. Para além de toda regra e para além de todo código de conduta ou gesto de rechaço ou intimidação do encoberto, a disposição absoluta de outra pessoa para ouvir e compreender nos resgata deste vão, e nessa terça-feira foi uma singela conversa de msn que, com humor e generosidade, ajudou-me a tornar ínfimo o que parecia – ou é, não sei ao certo - gigantesco.
Ainda existe quem torça o nariz e duvide da densidade destas formas de comunicação menos ortodoxas, mas nessa semana minha salvação – e uso a palavra tentando, por sua vez, salvá-la da grandiloqüência a que a condenaram - esteve não em um ato solitário, mas em um lugar compartilhado que tem a mesma virtualidade dos afetos, que não são sempre evidentes. Ela esteve na possibilidade de naturalizar/assimilar o ridículo inconfessável e assumi-lo como uma coisa, afinal, bastante simples. Algo assim como uma coisa da vida, mesmo.
terça-feira, novembro 11, 2008
observações impertinentes de viagem
- Aqui quando é mais tarde tá fazendo um calor, mas um calor que a gente pensa que vai é incendiar o mundo.
Considerando-se que eram apenas seis e meia da manhã e o sol já estava queimando, eu não ousei duvidar. Em casa, minha mãe confirmou logo a informação: a temperatura estava lascando. O bom é que, se da última vez os mosquitos não davam trégua, desta vez eles tinham simplesmente desaparecido e o meu repelente não ia ser necessário. Sintam o drama: nem os mosquitos aguentaram o calor.
**
A viagem ainda nem terminou mas o auge de tudo foi mesmo o evento religioso do último domingo. Lá estava eu entre familiares e diante da foto do Ratzinger, acompanhando meio desconsolado toda a burocracia infernal que significa realizar o batizado de uma criança, cumprir esse rito ancestral da tradição cristã que, pelo sim ou pelo não, as pessoas vão mantendo.
(Só para constar, informo que os pais e padrinhos precisam ter um cartão, que atesta a realização de um tal curso de batizado - nem me peçam para entrar em detalhes (!) - e o preenchimento da papelada relacionada a esse curso é a apoteose de tudo, ritual muito mais extenso e mobilizador que o instante mesmo da agüinha na cabeça da criança).
Alternando-me entre as funções de padrinho e fotógrafo - nos meus malabarismos colocava a mão na fronte de Davi e era um flash, a madrinha trazia a vela acesa e era outro flash - no final ainda pude observar os detalhes menos eloqüentes do evento. O total pago à igreja foi de 22,00, estando aí incluída uma singela lembracinha no valor de 2,00. Esse dia foi pouco agitado, houve apenas três batizados (esqueci de dizer que a cerimônia é coletiva). Ao final, o padre chama o nome de duas crianças - Davi incluído - e entrega aos respectivos pais a lembrança. Quanto ao terceiro, nada. Não foi difícil concluir que o último casal não havia pago os dois reais correspondentes a esse pequeno atestado de cristandade, e não foi também sem certa melancolia que eu pude testemunhar essa discreta mesquinhez de uma instituição que, em seus maiores tons, já se mostra tão reprovável.
Acabou sendo tudo muito simbólico, essa divisão de títulos escritos em letras douradas sobre papéis de temas infantis, exemplificando em diminuto a orientação tão equivocada - financeiramente pautada - de uma instituição que se diz sensível aos que acolhe. Por reles dois reais, um tanto de ostentação e constrangimento. Minha mãe ainda se perguntou, contrariada, porque então não se preferiu ao menos entregar essa lembrança no momento mais reservado destinado à conferência dos papéis e documentos de cada casal de pais e padrinhos. Mas tinha que ser tudo assim, no meio da cerimônia, muito sutilmente exposto, afinal é exatamente disso que se trata a instituição católica: até nos mais pequenos detalhes, um infinito jogo de ostentação e constrangimento.
quinta-feira, outubro 23, 2008
apaciguado
D. Eltit
terça-feira, outubro 21, 2008
a antipoética de uma não-cidade
Mas vamos lá: a cidade da vez foi Brasília. E como todo mundo tem lá os seus preconceitos, eu também vez por outra alimento os meus, e confesso que já cheguei lá completamente desesperançado, achando que ia ser tudo um saco. E foi. (Ou melhor, tudo não porque o encontro foi ótimo, organizado, agradável, produtivo, mas isso não vem ao caso).
Pra resumir, diria que descampado, isolamento e distância foram os signos que povoaram as conversas. Cansaço e lamúria contaminaram os ânimos, aliados a uma certa perplexidade diante do fato de que nenhuma conta totalizava menos de cem reais – para o desespero deste que vos fala. Boteco, multidão e calçada, por sua vez, eu descobri que são vocábulos meio inúteis quando se trata de descrever as paisagens urbanas do distrito federal - e digo urbanas com bastante hesitação, posto que quase sempre o que se vê é uma imensidão de “espaços mortos” (sentença que virou uma espécie de idéia fixa na cabeça de um dos companheiros de viagem). Tais áreas, preenchidas com escassa vegetação, só parecem mesmo servir para tornar a locomoção de quem não tem carro simplesmente impossível.
Em sintonia com essa irritante disposição espacial, a noção de ordem é algo que parece fazer a cabeça daqueles brasilienses que são realmente apaixonados pela cidade e que não se cansam de ressaltar a praticidade, funcionalidade e conforto que se alcança ao viver nas bem projetadas quadras onde tudo deve estar disponível em um raio de 500m: escola, farmácia, igreja... Uma espécie de economia dos movimentos que, segundo a minha lógica pouco tolerante, deve tornar as interações sociais incrivelmente restritas e, em última instância, anular qualquer possibilidade de deriva urbana despretensiosa.
Aos poucos que se arriscam a um passeio menos calculado, o que os espera é um sol inclemente e um ar seco sobre o qual eu nem preciso comentar, todo mundo já deve imaginar a desgraça que é. Eu que voltei sábado e aproveitei ao máximo o meu fim de semana em terras recifenses, só agora sinto o efeito das intempéries a que me expus nos últimos dias: tô acabado.
Na nossa única incursão exploratória pelo plano piloto – de carro, obviamente –, não passou despercebido o lamento do nosso atencioso guia acerca das pixações causadas "não por marginais, mas pelos jovens bem-nascidos da cidade". E, pra minha grande surpresa, acabei afinal considerando com boa vontade o ponto de vista deles: diante daquela aparente impessoalidade, a depredação deve se assemelhar a um gesto de repulsa, manifestação de desconforto em relação às carências ocultadas por uma ordem idealizada. E como estou falando mesmo é de preconceito aqui, essa súbita consideração – quase uma simpatia – pelo delito como mecanismo de extravasamento me deu uma idéia da aversão causada por aquela arquitetura pretensamente asséptica e também tão imponente. Acreditem: eu não tinha nenhuma predisposição a me identificar, o mínimo que fosse, com a juventude brasiliense. Mas a simples idéia de morar ali me pareceu enlouquecedora.
É assim, tem gente que tem preconceito contra um monte de coisa. Eu, de minha parte, logo me municio contra essa necessidade de ordem e exclusivismo que aniquila a abertura de possibilidades que, acredito ainda, uma cidade reserva. Alguém que tiver uma experiência de desordem e surpresa na capital do Brasil que a relate e me ajude a mudar de idéia.
terça-feira, outubro 14, 2008
terça-feira, setembro 30, 2008
virtualidades
Desejo prático: distender o tempo para multiplicar as possibilidades que exigem espera. O impossível acorda as fabulações que a razão do dia extenuou.
Eu nomearia tais pensamentos, mas... Esse devir não tem nome.
sexta-feira, setembro 26, 2008
duas visões de um pré-apocalipse
Tem sido comum a comparação Meirelles-Iñarritu que, por sinal, intensificou-se muito – e justificadamente – após este Ensaio sobre a cegueira que, de fato, tem muitos pontos de convergência com Babel, não tanto em termos narrativos, mas políticos mesmo, no que se refere ao tratamento de temas e às formas de olhar, atravessados por um tom e um grau de sutileza (ou falta dela) semelhantes. A grande questão é que eu não consigo reclamar muito dos filmes destes dois sujeitos aí: depois da sessão de Babel em um Tacaruna meio mofado, por exemplo, não conseguia apontar muitos problemas capazes de justificar minhas reservas frente à empolgação dos que me acompanhavam na sessão e adoraram. Isto porque não são filmes facilmente dissecáveis, no sentido de que não possuem grandes problemas, sejam estes em termos narrativos, técnicos ou estéticos. Por isso mesmo gostei da crítica de Eduardo Valente sobre Ensaio: o primeiro ponto que ele ressalta é a competência de seu realizador e a alta qualidade técnica do filme, o que, por sinal, é o mínimo que se espera de um projeto com tantos recursos e a possibilidade de contar com grandes profissionais. O ponto, então, é que as discordâncias em relação ao cinema realizado por estes dois acaba sendo lançada a um nível mais conceitual, com as divergências remetendo a aspectos relacionados ao que esperamos de um filme, que tipo de cinema nos entusiasma e nos contempla como experiência, ou que tipo de obra parece mais honesta e rica em suas multiplicidades de leitura e apreensão de significados.
Que a minha observação sobre a ausência de grandes problemas narrativos e estéticos, no entanto, não seja mal entendida. Ensaio tem sim problemas claros: pode-se apontar a redundância que o permeia, com a narrrativa em off sendo mesmo a maior e a mais irritante delas. Igualmente desnecessário é também aquele aspecto lavado da imagem, que parece buscar, em termos estéticos, o efeito semelhante à tomada de uma junta de médicos (escandinavos) andando no corredor branco de um hospital asséptico amplamente iluminado por fluorescentes. Cabe perguntar, claro, se todo esse climinha de "superabundância luminosa" seria de fato imprescindível.
E digo que não, não é. Primeiro, pelo motivo mais óbvio: o filme tem poucas imagens subjetivas, de modo que, se isto não é motivo pra rechaçar uma experimentação estética, por outro lado deixa claro que não era incontornável o imperativo de traduzir a cegueira em cada plano. Lembro de Sandra Kogut após a exibição de Mutum no Encontro da Socine, ocorrido ano passado no Rio, argumentando por que optou por não "representar" a deficiência visual de um personagem - nem o posterior aguçamento deste sentido enfim "recuperado" -, evitando a câmera subjetiva em um momento onde qualquer abordagem mais óbvia a perceberia como "natural". Segundo a diretora, no entanto, nada do que fosse mostrado daria conta, nenhuma solução seria suficiente. E mesmo que fosse, não mostrar significava muito mais.
Com isso, poderíamos arriscar uma linha básica de raciocínio: um diretor não precisa cegar-se para filmar a cegueira, nem é preciso que se imponha uma cegueira (simulada) aos espectadores para que estes a percebam. Parece uma observação banal mas, dados os resultados apresentados por Meirelles e a satisfação com que sua proposta narrativa tem sido aceita por parcela considerável do público, tal afirmação não carece de relevância nem parece tão óbvia.
É esse então um dos pontos que diferenciam filmes delicados como Mutum de um cinema da obviedade, da redundância. Para resumir, diria que tanto Babel quanto Ensaio foram filmes razoáveis que se volatilizaram poucos minutos após o fim da sessão - e isso é talvez uma das piores coisas que se possa dizer de um filme. Sem lacunas, sem sutilezas, o filme não nos ganha, nós não o tomamos para nós, dele não fazemos parte. Pode não ser um problema para quem não se importa muito em reduzir a experiência cinematográfica a duas horas de exposição a múltiplas imagens em uma sala escura. Para mim, isso não é nem de longe suficiente.
E ainda, como disse no início, nestes últimos dias houve também Haneke. Claro que traçar uma comparação entre os dois seria, além de um despropósito, um glope muito baixo. As incríveis semelhanças entre o filme de Meirelles e Le temps du loup, no entanto, só não são maiores porque os caminhos seguidos por ambos não poderiam estar mais distantes em termos de cinema. Haneke mais uma vez me deixou com uma sensação de Terror (ao ver Caché no cinema fiquei o tempo todo oscilando: ora grudado na cadeira, ora naquela posição meio ridícula de quem está prestes a dar um salto - em direção à tela, à cadeira do coleguinha da frente ou rumo à saída de emergência, sabe lá deus). E tudo isso de uma forma aberta, inconclusa e ao mesmo tempo contundente e agressiva, de um modo que seria cansativo e desinteressante descrever. Basta então lamentar não tê-lo visto na escuridão de uma grande sala de cinema (quem vir a cena noturna de fogo e trevas em um celeiro entenderá o que estou falando). De qualquer modo, a proximidade entre os dois filmes no que se refere ao tema e ao desdobramento dos fatos é assombrosa, embora o de Haneke seja incomparável, maravilhoso. Como diria uma pessoa que, em outros tempos, era leitora deste blog, "é de estourar a catapora".
terça-feira, setembro 23, 2008
ciudad y mirada
Nelly Richard, Resíduos y metáforas
domingo, setembro 21, 2008
sexta-feira, setembro 12, 2008
terça-feira, setembro 09, 2008
esse melancólico in-between
quinta-feira, setembro 04, 2008
but it did happen!
Andei pesquisando um pouquinho pra que da próxima vez em que eu resolva tocar no assunto, eu consiga ser um pouco mais consistente. (Assim quem sabe eu não fico com cara de bobo, como se nem eu mesmo acreditasse no que eu estou me ouvindo dizer):
Em 2005 houve um dos casos mais recentes de sapos caindo do céu. Aconteceu em Belgrado, na Sérvia, como qualquer busca rápida no google pode mostrar. E sim, são milhares deles, e não uma meia dúzia saída de um pântano qualquer. E o mais curioso desse estranho evento, no caso específico de Belgrado, é que boa parte deles chegou ainda viva ao solo - embora levemente desorientados após o impacto, suponho. A notícia pode ser conferida aqui e aqui. Já nesse site aqui há uma pequena explicação que, reconheço, tira boa parte da graça do "fenômeno".
E toda essa conversa pra, no fim das contas, dizer que isso não tem a menor importância. Afinal, a veracidade ou o realismo são o que menos importa, no cinema ou nas simbologias da vida. O que importa mesmo é que, de fato, parece bem provável que coisas estranhas aconteçam o tempo todo.
(Será?)segunda-feira, setembro 01, 2008
desarmonia, silêncio e mucilon
A gente pensa que está ficando mais calmo, suave, “homogêneo”, e de repente começa a adolescer de novo, fica brusco, cortante, irregular, cada palavra ou gesto um conflito. Em suma, uma total desarmonia.
***
A propósito, eu tenho achado complicado não apenas me entender com os outros, mas também tem sido cada vez mais difícil gerenciar pessoas, corresponder às expectativas, dar atenção, cultivar proximidades. Isso se estende também à idéia de juntar indivíduos de diferentes contextos na esperança de vê-los interagir. Os seres humanos devem ser cronicamente incompatíveis – ou/porque muito intolerantes.
***
Às vezes eu tenho vontade de viver uma cena como aquela de Bande à part em que o trio de protagonistas faz um minuto de silêncio. Sim, essa benção que seria um demorado, incômodo e suspenso minuto do mais absoluto silêncio - não apenas um tempo sem palavras e vozes, mas a completa ausência de som e ruídos de qualquer espécie. Só que aí eu lembro que provavelmente eu estragaria tudo soltando uma pérola macabéica como aquela “eu gosto tanto de prego e de parafuuuuso!”. É isso ser periférico e subdesenvolvido: uma fala nordestina, pobre, feia e sem instrução invadindo a minha ceninha nouvelle vague.
***
sábado, agosto 23, 2008
imagem e fantasmagoria
Desde adolescente eu sempre tive um fascínio especial e inexplicado pela música e pela cultura sessentista, de modo tal que conseguir aquela sonhada gravação de Janis cantando Piece of my heart foi um dos momentos de glória desta minha curta carreira de colecionador de imagens. No entanto, mais do que pela coisa toda da contracultura que também sempre me interessou, o que era mais forte no meu apreço pelos vídeos dessa época era a questão da imagem registrada em uma época tão antiga quanto a televisão em preto e branco.
Engraçado porque, neste sentido, o que importava não era tanto o período em si, mas o fato de que para mim, tão novo como era na época, imerso no presente imediato em uma intensidade que só os adolescentes podem atingir, os anos sessenta eram talvez o mais longe no tempo que eu conseguia voltar. O maior fascínio então - e o que eu lembro agora - era por aquele registro de um passado, era pensar nos mortos que se faziam presentes naquelas imagens, era a descoberta (tardia) de que aquilo que a imagem ali re-apresentava era já algo sem vida, algo que foi e que não mais existe.
Assim, no que diz respeito especificamente aos vídeos, marcaram-me menos as grandes apresentações de rock que as gravações antigas de programas e apresentações onde artistas da Motown se apresentavam com aquelas roupas, cabelos e trejeitos. As melodias fáceis soavam a nostalgia e carregavam o peso do cliché pelo recurso de usá-las em qualquer circustância em que se pretendia aludir a uma outra época, talvez mais áurea, mais romântica do que a atualidade.
Ver o público dançando, sua forma de gritar para os ídolos, o olhar de paixão que estes lançavam juntamente com a melodia que entoavam, tudo isso atribui um ar fantasmagórico ao todo, amplificado por uma atmosfera meio esfumaçada e uma impressão estranha de que aquilo parece nunca ter sido presente, fato vivo. Como se as imagens já nascessem antigas - datadas, para retomar a palavra de um amigo, quando comentando e compartilhando dessa minha impressão - , como se aqueles seres nunca houvessem sido de carne e osso, mas só existissem na tela como sonho, como simulacro, desconectados da realidade com a qual não teriam nenhuma vinculação; sua presença não relembrando histórias, existências, mas compondo uma dimensão imaginária que nunca existiu em cores nem fora da bidimensionalidade do registro, dos limites do quadro.
Enfim, não parecem irreais, estes corpos se movendo de forma tão sinuosa, em uma velocidade que não é a mesma do mundo vivo, e a voz saindo não das bocas das cantoras mas da própria imagem, reforçando a impressão de que tudo está na superfície da imagem e não na materialidade do espaço que ela registra?
(Este cárater simulacral a cantora Amy Winehouse bem soube recuperar, exagerando, para a composição de sua persona, como bem atesta aquela ficção que é o cabelo dela).
Sensação semelhante a esta que descrevi talvez possa ser evocada com relação às imagens em super 8, estas de fato já estando praticamente vinculadas a uma idéia de passado, lembrança. Assim também se pode falar de alguns filmes antigos onde movimentos, roupas e expressões parecem irreais - filmes mudos e da nouvelle vague, principalmente, e ainda outros como por exemplo Mouchette, de Robert Bresson e O martírio de Joana D'arc, de Carl Theodor Dreyer. Na verdade, acho que a lista de imagens fantasmagóricas poderia seguir ad infinitum.
p.s. Uma rápida pesquisa sobre a idéia de fantasmagoria relacionada à imagem, na internet, mostrou que existe um livro do Erick Felinto bem específico sobre o assunto, chamado "A imagem espectral: comunicação, cinema e fantasmagoria tecnológica" (!). Fiquei curioso para conhecer o modo como ele desenvolve a idéia. Como não o li, obviamente não posso dizer se tem alguma coisa a ver com o que pensei aqui ou se eu só viajei mesmo. :p De qualquer forma, fica registrada a existência do livro. Se eu conseguir lê-lo, depois conto.
sábado, julho 26, 2008
red, gold and green
quarta-feira, julho 23, 2008
cura
Diante deste lance de dados tão grave em sua permanência, qualquer justificativa, cura ou solução definitiva está fora de alcance. Ou, ao menos, só pode ser encontrada dentro da esfera do pragmático. Nós, no entanto, continuamos recorrendo a todos os campos, todos os saberes e sistemas de pensamento, para tentar estancar o fato recorrente e circunscrevê-lo ao passado. Diante desta vontade de cura, não há ceticismo possível: não se trata de crer ou não crer, mas de esgotar as possibilidades, agarrando-se a um fio de esperança, aceitando todas as indicações e cumprindo todas as receitas, desde as supostamente garantidas até aquelas mais disparatadas.
***
E isso me faz lembrar um belo trecho do livro de Tununa Mercado, Em estado de memória, onde ela fala da busca pelos mais diversos meios para aplacar a dor pungente que acometia àqueles arrebatados pelo exílio e por todas as outras provas infligidas aos cidadãos argentinos ao longo dos períodos ditatorial e pós-ditatorial:
"... nenhum psiquiatra se ocupou em particular de mim, deixando sem leito a imensa capacidade de transferir que me caracteriza e que me tem levado a diversas formas de dependência de médicos de toda laia, incluídos os dentistas, os ginecologistas e, sobretudo, os curandeiros da mais variada espécie: santeiros, xamãs e 'mestras' que fizeram de mim corpo de limpeza. Com ramos de menta e magericão, fumegos de mirra e incenso, com alhos, loções, teixos de côco, oráculos e outras técnicas de sorte, alguns tentaram curar meu mal e salvar-me dos feitiços e em ocasiões conseguiram-no, porque não deve haver terreno mais fértil para as curas que meu corpo e minha alma".
quarta-feira, julho 09, 2008
cabeça no mundo
E eu tinha pensado agora em fazer uma listinha de intenções - lugares a conhecer, coisas a fazer - mas tenho preguiça, e minha principal companheira de viagem é ninguém menos que Amanda, então sei que tudo será como uma surpresa, algo a ser decidido de última hora. Da última vez em que viajamos (fomos pro Rio), só na noite de sábado nós começamos com o plano de ir à Lapa, depois cogitou-se uma ida a um baile funk, depois quase chegamos a conhecer a Mangueira, até que por fim terminamos numa casa noturna de Copacabana dançando electro e ouvindo muito rock (sugestão minha, claro!). Ou seja, toda noite é uma noite em aberto e somos pessoas sem rumo. Que ótimo, não?
Só que dessa vez acho que nem vou ficar tão indócil pra ir pras baladonas, tentando usar todo o meu poder de persuasão pra convencer a "comitiva pernambucana". Na verdade, juro que o único lugar que eu quero ir com certeza é a Liberdade. Não me perguntem porquê, mas só penso nisso desde que começamos a articular nossa ida.
Bom, então depois eu conto se deu certo ou não, se eu conheci a Liberdade ou não, se fui em algum dos lugares que nos indicaram ou não. Até a volta!
Para ouvir:
Sonhei que viajava com você - Itamar Assumpção
quarta-feira, julho 02, 2008
interstício
O mês de julho me encontrou assim naquele estágio que a gente fica às vezes e para o qual a única coisa que eu encontro e que seja capaz de descrevê-lo é aquela palavrinha em espanhol lida outro dia: duermevela. Algo assim como uma semivigília: a pessoa permanece suficientemente consciente do entorno, mas sem a força ou a autodeterminação que só a mente desperta permite. As coisas acumulam-se - começadas apenas pelo ímpeto vazio de serem começadas - causando aquele efeito de escombro e sucata na nossa rotina que pode ser literal ou simplesmente figurativo.
Três romances, três leituras não-terminadas, outros tantos livros de teorias e ensaios lidos somente até a metade (ou pouco menos) mais um sem-número de outros ainda por começar, e por fim - e ainda mais importante - um texto a escrever travando logo no início. Um texto que não avança porque parece que tudo que possa ser escrito é multiplicação desenfreada de signos dispensáveis – e já há tantos!
As sensações que dizem respeito a questões mais propriamente pessoais, não-produtivas, não são menos desanimadoras: ressaca emocional e abuso completo. Da cidade, da gente e das coisas daqui que eu sei que são todas ótimas, mas que por enquanto só despertam desconforto. Foi Clarice que disse que todo lugar é lugar e o que mais importa é ser você mesmo, onde quer que seja? Bom, acho que isso significa que não adianta levantar o acampamento pra vizinhança mais próxima e esperar com isso encontrar algum tipo de graça. De qualquer forma, esse acampamento aqui não irá muito longe tão cedo. E mesmo todas as coisas mais promissoras à vista – viagens em breve, pessoas a reencontrar, histórias por acontecer – não parecem merecer sequer uma manifestaçãozinha mais efusiva. (Nem o cinema tem sido um refúgio que pareça funcionar como antes).
Que mofo! Mas eu bem sei, embora não possa garantir, que é nessa hora em que se inventa um pensamento bem bom ou o plano mais infalível ou a brincadeira mais maligna e arriscada pra conseguir colorir essas horas feíssimas.
Para ouvir:
Here (Doctor L remix) – Salif Keita Remixes from Moffou
terça-feira, julho 01, 2008
nome próprio
Não posso opinar a respeito dos livros da Clarah Averbuck pois não os li, mas pelo que já conheço do seu blog, posso dizer que achei seus textos bem fraquinhos. Sinceramente, acho seu tom confessional-adolescente bastante cliché, pueril até. Também acho um pouco irritante essa sua irritação (sim, deve ser algum tipo de efeito de contágio) com a idéia de ser asssociada a uma literatura blogueira. Tudo bem que deve ser mesmo um saco ter que ficar o tempo todo falando em nome de um tal "fenômeno da blogosfera" (e convenhamos, que assuntinho mais fora de moda esse), mas a impressão que fica para mim é que tal irritação se deve muito mais a uma noção implícita de rebaixamento existente no atrelamento da denominação de blogueiro(a) à de escritor(a).
Tudo bem, concordo que blog é antes de tudo um suporte. Exemplo mais óbvio é o fato de existirem blogs dos mais diversos tipos: de crítica cultural, de esportes, de gastronomia e também, claro, de literatura. (Tem até os blogs sobre nada, como o deste que vos escreve, ou seja, os blogs anotações-do- crioulo-doido-que-pensa-com-os-dedos-no-teclado). Mas essa coisa de bater o pé e dizer que livro é livro e não tem nada ver com blog, como se o modo de escrever, o estilo, as referências e o universo temático fossem diferentes e não permeassem a escrita de ambos, soa mais a uma ânsia de reconhecimento como Literatura (assim com L maiúsculo). E convenhamos: se como blog o texto já deixa a desejar, que dirá então como "alta literatura".
Enfim... Mesmo com temática tão limitada, Salles consegue tornar o filme na maior parte do tempo algo envolvente, gerando uma certa identificação no espectador, mesmo a partir de um universo tão auto-centrado - e com dilemas muitas vezes tão triviais. Isso porque o filme consegue o que a escrita da autora não chega a fazer: a partir de acontecimentos próximos e experiências vividas - elementos que, em maior ou menor grau, pode-se dizer que compõem o substrato de praticamente toda literatura - consegue dar um salto rumo a um conjunto de questões e sentimentos que ultrapassam a limitada esfera individual e localizada dos fatos.
E é exatamente por isso que, na minha opinião, o filme tem seus momentos mais problemáticos justamente quando a narração apresenta passagens dos textos elaborados pela personagem principal, Camila (alterego da escritora). Ao delegar o relato à sua fonte, o texto escrito, o filme sucumbe às deficiências deste, quando tal revêrencia nem seria necessária - afinal, o filme é apenas uma adaptação livre, como a escritora fez tanta questão de ressaltar, afirmando que o filme não era dela - o livro sim (ver no blog oficial do filme aqui). De fato, o filme não é dela, nem é unicamente do diretor, e talvez por isso tenha funcionado. É coletivo, claro, (afirmação óbvia!) e dentre as contribuições que se somam em sua realização, está a de Leandra Leal, linda e se garantindo muito na atuação.
Mas voltando ao diretor: este ainda tem fôlego para contornar boa parte dos problemas, inclusive este de como inserir a instância da escrita, ponto de partida da obra, no seu universo audiovisual. No filme, as palavras são signos que se desdobram na tela, sobrepõem-se aos planos, inscrevem-se no chão, nas paredes, nos corpos. Salles, então, é quem parece resolver melhor a questão do suporte postulando que, quando a escritura se constitui como veículo para afirmação da vida, energia criadora, não se faz tão necessário diferenciar livro, diário, blog, filme, carta, etc., porque a palavra transborda todas estas instâncias, e tudo está impregnado de sentidos inventados ou ressignificados pelo ato de escrever a própria história, de ficcionalizar a experiência.
quinta-feira, junho 26, 2008
remorso ou hipocondria?
quinta-feira, junho 19, 2008
tea time
***
A imensidão de coisas que tenho para fazer em um prazo devastadoramente curto me obrigarão a passar os próximos dias mofando em casa, em plena época de festejos juninos, de um modo semelhante ao que ocorreu no ano passado - sendo agora a situação, no entanto, bem mais grave. Menos mal, o nome disso deve ser conspiração cósmica: a consciência da necessidade de trabalhar feito um louco veio bem na hora em que eu precisava de um bom recolhimento. Afinal, existe um ditado que diz mais ou menos assim: "macaco que muito se revira no galho, leva chumbo". Ou algo perto disso, não importa. A regra parece clara: aos períodos de superexposição segue-se sempre o imperativo de ficar bem quietinho e fechar o bico.
Para ouvir:
Trouble every day (opening titles) - Tindersticks
quarta-feira, junho 18, 2008
le compteur
Eu poderia prolongar os delírios imaginativos que sonham fatos imprevisíveis, acontecimentos grandiosos, mas tenho nutrido essa preguiça que diluiu até a dispersão do meu pensamento em exibicionismos fúteis, e agora só fantasio banalidades – ainda assim por pura falta de concentração e por hábito, nunca pelo que antes entendia como uma capacidade de apreender o delicado.
Quem sabe, talvez, poderia levar ao limite esse indício vago de melancolia até que alcançasse pensamentos finalísticos - daqueles em que a gente vai submergindo até perder de vista a dimensão das coisas, achando que tudo está à prova e chegando mesmo a arriscar palavras tão definitivas como felicidade, vida, afetos - mas eu tenho estado tão mais alegre, agora que aprendi tudo o que um pouco de cautela ou desconfiança, somado ao acúmulo de algumas experiências mal-sucedidas, é capaz de fazer para nos deixar mais prag-má-ti-cos e fun-cio-nais.
Sim, agora estou mais alegre e no entanto há algo de que sinto falta, e é a sensação agridoce que pairava quando ainda parecia que apenas um antigo pensamento ingênuo e uma conversa bem demorada seriam suficientes pra me fazer sentir que estávamos vivendo. Sim, o velho sentimento de que, por termos nos encontrado, havíamos inscrito nosso gesto de forma indelével na vida um do outro e seríamos para sempre cúmplices. Sentimento que só de acreditar já era suficiente para dar sentido a toda uma vida. Sentimento besta, que hoje nem atribuo mais a ninguém que não ao meu desvario, e só escrevo pelo puro tédio de uma noite sem nicotina e com essa música que toca de novo e de novo e de novo voltando sempre no meu fone de ouvido.
quinta-feira, junho 05, 2008
simbologias
Enfim: começa a me encantar, verdadeiramente, essa dimensão ritualística da experiência.
***
Estava relendo posts anteriores quando me dei conta disto: essa birosca está há exatos quatro anos no ar! E o objetivo inicial, mais vivo que nunca. Na verdade, é interessante notar como, das pessoas com quem costumava compartilhar esse hábito, no início de tudo, praticamente nenhuma continua blogando. Acho que é minha eterna adolescência, indefinidamente prolongada, que me faz continuar precisando disto, e apesar das vezes em que pensei em deletá-lo e criar um outro, falar de coisas mais úteis, debater idéias, escrever sobre assuntos específicos, sei lá... no fim das contas sempre resolvi continuar assim, caladinho, com minha escrita pessoal e minúscula. Acho que isso prova, como disse, que a intenção inicial continua valendo, e talvez também que de fato não estava mentindo quando afirmei lá atrás os motivos que me levaram a começar. Além do mais, convenhamos: já se discute tanta coisa séria e importante nesse mundo...
***
Agora há pouco também o blog deu um pequeno piti e ficou com aquele velho problema no espaçamento que eu odeio, mas agora creio que tudo já foi definitivamente resolvido. Deve ser a idade, coitado...
terça-feira, maio 27, 2008
recife, a tsunami brasileira
sexta-feira, maio 23, 2008
segunda-feira, maio 19, 2008
o tempo deliqüescente
Os aquários, grandes e pequenos, redondos e cúbicos, eram colocados na rua para atrair os curiosos. Entre os turistas e as crianças ansiosas, sem falar das senhoras que colecionavam variedades exóticas (550 fr. pièce), encontravam-se esses aquários, ao sol, verdadeiros cubos ou esferas de água que o sol misturava com o ar, e os pássaros cor-de-rosa e negros, girando e dançando docemente numa pequena porção de ar, lentos pássaros frios.
(...) E nós pensávamos nessa coisa incrível que havíamos lido, que um peixe sozinho no seu aquário se entristece e, então, basta colocar um espelho em frente do vidro e o peixe volta a ficar contente..."
O jogo da amarelinha, Julio Cortázar
quarta-feira, maio 14, 2008
um marco do incômodo
Na ocasião da primeira vitória de Lula como candidato à presidência, lembro a euforia que tomou conta de todos aqueles que, de algum modo, mesmo que timidamente, militaram em sua campanha. Eu, no auge do meu entusiasmo político, compartilhava com muitos a expectativa de ter um governo federal composto por muitas das figuras que admirávamos e que tinham se tornado referências por se destacarem como políticos que, de certo modo, pareciam compartilhar conosco muitas posturas – e por nós refiro-me aqui principalmente ao meio estudantil, ponto a partir de onde vivenciei tudo na época. Era animador, por exemplo, ter figuras como a de Cristóvam Buarque - que em 2002 participou da abertura da Estatuinte da UPE e que tão bem havia falado, na ocasião, das ansiedades e desejos da comunidade acadêmica – no Ministério da Educação. Enfim, essa figura que, na ocasião da estatuinte, falava conosco contra eles, iria agora estar lá – ou pelo menos foi assim que eu, ingenuamente, recebi a divulgação desse e de muitos outros nomes que iriam compor os ministérios.
No entanto, não só em relação ao meio ambiente como em praticamente todos os outros pontos, o governo Lula demonstrou ser bem menos transformador do que a ingenuidade política me faria crer, e foi ainda a figura de Marina quem simbolicamente indicou para onde o embate de forças desse “governo em disputa” – jargão que se tornou comum na época e que, não raramente, servia inclusive para que a militância mais fiel justificasse as crescentes e lamentáveis “concessões” realizadas – pendia com mais força. Marina Silva manifestou-se de forma crítica e combativa em diversas disputas relacionadas ao meio ambiente, como no caso da construção de hidrelétricas e de Angra 3, nas questões dos transgênicos e dos biocombustíveis - para citar apenas alguns dos pontos que foram pauta nestes anos - e, na maior parte das vezes, foi solenemente ignorada, quando não publicamente advertida.
quinta-feira, abril 17, 2008
é mambo!
Eu tô que nem Cabíria no night club!
sexta-feira, abril 11, 2008
contra a corrente (?)
Slavoj Zizek
terça-feira, abril 08, 2008
ill wind
Let me rest today
You're blowin' me no good
No good
Go, ill wind, go away
Skies are oh so gray
Around my neighborhood
And that's no good
You're only misleading
The sunshine I'm needing
Ain't that a shame
It's so hard to keep up
With troubles that creep up
From out of nowhere
When love's to blame
So, ill wind, blow away
Let me rest today
You're blowin' me no good
No good
segunda-feira, março 31, 2008
noves fora
Bom, devo dizer que, por enquanto, eu muito feliz com os saldos.
***
Continuam valendo aqueles versos da música de Tom Zé:
"quanto maior o romantismo,
mais cruel se transfigura o carinho em tortura".
Pois é. Se for pra aderir a certos romantismos que existem por aí, prefiro ser uma pedra. De qualquer forma decidi, afinal, que não sou um insensível. Depois de quase ser convencido do contrário, continuo por fim acreditando que sou sim, de alguma forma, muito romântico e idealista, mas de um romantismo secreto - desajeitado, talvez -, que não se derrete em palavras e gestos grandiloqüentes, apressados (e quase sempre muito suspeitos). A questão é que até que algo realmente valha a pena, essa delicadeza eu vou guardando pra mim.
***
Para ouvir:
The warning (2006), do Hot chip
quinta-feira, março 20, 2008
trouble every day
Pra começar, esse que faz tempo eu estava procurando: Trouble every day, de Claire Denis. Em uma sinopse bem pobre, algo como um filme sobre pessoas com um desejo sexual incontrolável que devoram(!) os seus parceiros em atos canibalísticos. Fiquei besta! Sem maiores comentários...
P.S. E só agora me liguei que, justamente na semana santa, tanta carne, sangue e sexo! Eu juro que não foi provocação. :p
sexta-feira, março 14, 2008
o jogo
Há um momento muito bonito no filme Dançando no escuro. Selma Jezkova, depois de ser advertida por causa de mais uma das muitas trapalhadas cometidas por ela na fábrica enquanto submergia num universo de fantasias e pensamentos muito próprios – o que acontecia sempre – diz com aquela cara de cachorrinho que só Bjork sabe fazer: “eu tinha decidido parar de sonhar acordada... mas depois... eu esqueci”.
Acho que no fim das contas a gente sempre precisa sonhar, de um jeito ou de outro, e nisso está muito da nossa beleza. O problema é que, como diria Mari, quando algo assim foge do controle, a gente fica muito – cerebral. Não no sentido de privilegiar o racional – nada menos racional do que isso! - mas é que a gente vai se fechando em torno de pensamentos e divagações e vai ficando cada vez mais retraído, mais imerso. E, além disso, sempre se corre o risco de começar a achar que a vida paralela que a gente inventa é melhor que “a outra” – pelo menos as pessoas são melhorzinhas, e assim machuca menos.
terça-feira, março 04, 2008
quando a imagem é demais
Já há algum tempo, os noticiários foram tomados pelas imagens de Ingrid Betancourt no cativeiro, supostamente filmadas em outubro do ano passado e veiculadas com o intuito de atestar sua existência, provando que ela ainda está viva. Mal acompanhando os noticiários nestes últimos tempos, na ocasião eu as vejo com freqüência - dada a forma exaustiva com que foram divulgadas - e quando isto acontece, sou tomado por certo incômodo: entendo que preciso inteirar-me do que acontece, formar opiniões a respeito, e que ali está posto algo muito sério que merece uma observação cautelosa e atenta. No entanto, não consigo. Não porque seja mais forte a displicência inicial com que voltei o olhar à tela antes de deparar-me com o vídeo e perceber a urgência do assunto. Mas porque, de antemão, senti que nenhum esforço para processar o que me atingia pareceria suficiente.
Algum tempo depois, já quando o tema assume uma nova forma - do problema crônico e já assimilado das guerrilhas, passando pelo reaquecimento do debate ocasionado pelas novidades nas negociações para libertação de seqüestrados, até a recentemente deflagrada crise sul-americana, cujo estopim foi a violação ao território estrangeiro do Equador pelas forças oficiais colombianas - retomo o assunto de uma forma, suponho, um pouco menos preguiçosa e irresponsável. Diante dos desdobramentos, vou aos jornais, tento ler notícias, opiniões, análises a respeito, e buscar algo que de fato me envolva ao tema e me distancie do odioso auto-glorificante acúmulo de informações. Porque não, nunca devoro atualidades apenas para me gabar de ser um sujeito bem-informado - o que, se por um lado, não é motivo de orgulho nenhum, uma vez que não são poucas as vezes em que ignoro discussões e fatos notáveis, pelo menos é uma atitude que considero um pouco mais espontânea. Nesse fluxo histérico de informações, dou-me ao luxo (e normalmente sem muito sentimento de culpa) de simplesmente dizer que não tenho condições, no momento, de opinar sobre o que se passa.
Assim, se retomo este assunto e busco inteirar-me é porque sinto que algo aqui me diz respeito: não sei bem o que, nem como, mas acredito que algo, de algum modo, me afeta. Ou melhor, eu sei: é a imagem de Ingrid Betancourt, que ficou calada dentro de mim mas não se neutralizou; falou mais alto de novo, em seu silêncio, e me causou incômodo. Não por acaso, então, voltei a ela: precisei ver de novo o vídeo, talvez buscando uma forma de me aproximar emocionalmente do assunto e assim ser menos cínico, menos enciclopédico na minha vontade de entender.
Mas ainda assim é difícil. Vendo-o, foi impossível não lembrar daquilo que li sobre a imagem traumática. O trauma, para Roland Barthes, seria aquilo que interrompe a linguagem e bloqueia a significação. No que se refere especificamente à imagem fotográfica, ele diz: “a foto-choque é, estruturalmente, insignificante: nenhum valor, nenhum saber, em última análise, nenhuma categorização verbal pode influir sobre o processo institucional da significação. Poderíamos imaginar uma espécie de lei: quanto mais direto é o trauma, mais difícil a conotação; ou ainda: o efeito ‘mitológico’ de uma fotografia é inversamente proporcional a seu efeito traumático”.
Essa idéia de bloqueio diante de uma imagem traumática, por sua vez, me fez lembrar do filme Persona: a atriz Elizabeth Vogler, internada em um hospital, assiste diante da televisão à imagem de um homem ateando fogo ao próprio corpo como forma de protesto. Diante do choque de testemunhar aquele corpo em chamas, da força das imagens e da radicalidade do protesto, a atriz, estarrecida, contempla a cena, imóvel. Diante deste horror a arte emudece, o cinema não tem meios de processá-lo, assimilá-lo, mostrando-se impotente.
É possível no entanto que a citação de Barthes esteja bastante deslocada. Porque me parece que não é o caso de ter sido bloqueada a significação; muito pelo contrário, o que se percebe é a supercodificação do visto por uma infinidade de discursos que possuem motivações políticas diversas. Assim, creio que não era exatamente sobre isso que Barthes falava. Mas tomo a liberdade para a apropriação indevida, para a des-(ou re)contextualização, como forma de expressar um pouco a dificuldade de, a despeito da espetacularização a que a imagem foi submetida, significá-la, dar conta de tudo o que ela representa.
Porque se a imagem de Ingrid em seu cativeiro choca, talvez seja isso o que a torna tão difícil de assimilar. Diante dela não há palavras, não há análises de conjuntura, não há opiniões, palpites ou arrebatamentos que abranjam o horror que ela evoca. Se, para os familiares, vê-las deve ser quase insuportável, para qualquer pessoa que por um minuto coloque-se no lugar de Ingrid ou tente enxergar nela um familiar querido (mas é exercício fadado ao fracasso, é impossível imaginar algo assim!), enfim, para pessoas que se permitam essa sensibilização, não parece exagero associar essa imagem à idéia de um trauma. Diante dela, não há sentido completo possível. A palavra seria sempre insuficiente. E a racionalização, cínica.
Arriscaria, então, dizer que estaríamos neste caso diante de algo como o Real inapreensível de que fala Slavoj Zizek, filósofo esloveno. Qualquer tentativa de assimilá-lo mostra-se quase impossível, porque o entendimento sempre se dá no nível simbólico, da linguagem. Ou, nas palavras de Zizek: este Real, “exatamente por ser real, ou seja, em razão de seu caráter traumático e excessivo, não somos capazes de integrá-lo na nossa realidade (no que sentimos como tal), e portanto somos forçados a senti-lo como um pesadelo fantástico”. E não seria isto o que eu mesmo estaria tentando fazer aqui: possibilitar a conotação, estabelecer mediações simbólicas, mitológicas para tornar a imagem de Ingrid assimilável?
O fato é que não pude ignorar, e fui à rede saber um pouco mais.
Um breve panorama na internet sobre a cobertura no Brasil nos dá uma idéia da disputa ideológica que se dá em torno dos fatos. Resumindo o estado dos argumentos de forma bem grosseira (neste caso, intencionalmente redutora, para tentar emular a grosseria com que alguns articulistas têm recortado e exposto o quadro): enquanto sistemas de mídia direitistas enfatizam aspectos como o uso da palavra guerra por Hugo Chávez como mais um mecanismo e recurso para a caracterização do presidente venezuelano como um louco paranóico e irresponsável - capaz de colocar sob ameaça todo o subcontinente latino-americano - colunistas como Emir Sader, por sua vez, jogam os holofotes sobre as ações conspiratórias do governo de Uribe na Colômbia e suas relações com o poderio norte-americano. Enquanto isso, Fidel Castro já nos informa ouvir soarem as trombetas da guerra...
Diante de tudo isso, penso com certa irritação em como muitos dados são manipulados sob a forma de opiniões anti-chavistas ou anti-estadunidenses. Penso com ainda mais irritação em como as pessoas ainda supõem, convenientemente, haver explicações fáceis para uma questão tão complexa quanto a do narcotráfico, das guerrilhas e das disputas políticas na região. O que eu não consigo sequer pensar é na existência provável de pessoas que ponderem, considerando justificável que vidas como a de Ingrid Betancourt sejam relativizadas em nome de qualquer causa bem intencionada que pretenda tornar a vida humana minimamente mais digna. Porque o que estes fatos lamentáveis denunciam é a barbárie, e para ela não existem justificativas fáceis ou antagonismos claros. Sem querer soar grandiloqüente, diria: somos todos responsáveis.
Eu, como há muito já deixei de me entusiasmar com grandes causas gloriosas e messiânicas e comecei a recusar o jogo das respostas fáceis – no qual as pessoas acreditam de modo a tornar (para o alívio de todos) o mundo mais ordenável, inteligível e explicável; eu, que aprendi a assumir que não entendo, que muitas vezes não sei o que dizer e que a experiência me transpassa (ou por vezes parece que me contorna, me dribla), apenas tento responder ao alto impacto daquilo que vejo e que, somado às mensagens lingüísticas que o acompanham, torna-se simplesmente demais, um excesso que não consigo absorver.
Sim, porque não temos somente o vídeo: temos o relato. Ingrid Betancourt não come, não tem forças, está esgotada física e emocionalmente, seus cabelos caem aos montes, seus ossos já se tornam visíveis sob a pele e acredita-se que tenha hepatite do tipo B (e a partir daí imaginamos como podem estar os outros seqüestrados, dos quais não temos muitas notícias). No vídeo, sua cabeça está sempre voltada para baixo, seus braços caídos sobre o corpo, imóveis, e seu semblante triste, muito triste e desolado(r)! São cinqüenta e cinco segundos de um silêncio pungente, indescritível, em registros feitos por uma câmera perscrutadora que vai se aproximando do rosto de Ingrid até quase o limite da distorção. E é tudo tão forte e impossível, e é tudo tão terrível que nos comove.
Para ver:
Vídeo divulgado pelas Farc com as imagens, aqui.
E para que não reste dúvidas de que perplexidade e suspeita não se confundem com omissão ou descrédito a qualquer tentativa de posicionamento político concreto, coloco também o link para um vídeo que trata das obscuras relações entre Uribe, Estados Unidos e narcotráfico. Note-se que a postura lamentável do presidente colombiano no que diz respeito às negociações para libertação dos seqüestrados torna-se ainda mais ambígua diante destas informações. Disponível em espanhol, aqui.
Para ler:
O óbvio e o obtuso, de Roland Barthes.Bem-vindo ao deserto do real, de Slavoj Zizek.
sábado, março 01, 2008
“o que te ilude é roliúde”
Todo mundo precisa de um filme bem xarope às vezes, para descolar-se da atmosfera de pensamentos difíceis que a gente respira quase todo o tempo. O problema é que sempre que vejo um filme assim, bem meloso, fico me perguntando o quanto isso inconscientemente não deve ter contribuído para me assinalar promessas que jamais serão cumpridas – digo, principalmente antes que eu começasse a ter o mínimo discernimento (ou senso de auto-proteção) capaz de me advertir a tomar cuidado e recuar de histórias que insinuem a possibilidade, em qualquer tempo e lugar dessa existência, de conseguir um reconhecimento mútuo e uma delicadeza rara que me permita ficar menos sozinho, menos desamparado nesse mundo difícil.
Pense bem: se você duvida que de fato todo o repertório de cultura midiática que a gente vem acumulando desde criancinha influencia as nossas expectativas com relação aos nossos encontros (e sobretudo desencontros) pela vida afora, imagine quantos e quantos filmes, seriados, novelas etc etc nós viemos absorvendo e armazenando na nossa cabecinha durante todos esses anos. Pense em como a crença em um amor romântico, monogâmico, sensível, cúmplice e duradouro capaz de nos acolher e proteger da nossa condição de seres avulsos não pode bem ser um resultado de narrativas culturais bem forjadas. Pense na persistência desse romantismo, mesmo que as pessoas neguem, finjam não se importar, não buscar (aliás, pense em como um certo tipo de romantismo sobrevive mesmo com tantos declarando sua morte!) e diga se não deve haver algo muito enraizado no nosso universo pessoal de sonhos.
Para isso, não cabe nem tanto considerar o momento presente com que, em maior ou menor grau, já conseguimos desenvolver um certo cinismo que (supomos) nos protegerá dessa vontade. Em vez disso, coloque-se na sua existência infantil, naquele momento de formação da sua personalidade e do seu perfil emocional que - embora correndo o risco de parecer essencialista – arriscaria dizer que se mantém relativamente constante (o que, a propósito, pode ser a origem daquela sensação terrível de que cometemos sempre os mesmos erros no quesito “relações pessoais”).
Um exemplo concreto: pense em você criancinha assistindo ao episódio do Chaves em que todos vão para Acapulco - menos ele que, tristíssimo, fica sozinho na vila. Lembre que depois Seu Barriga o convida, de modo que o episódio termina com todos felizes comendo churrasquinho na praia ao pôr-do-sol. Não há dúvida de que você é colocado no lugar do Chaves – levado a comover-se com o abandono para logo em seguida sentir-se aceito e participando da aventura na ida à praia. Este episódio do Chaves, em suma, te leva a acreditar que você será emocionalmente incluído, ao longo da vida, por um ou outro salvador - mesmo que seja um barrigudo careca. Mas creia: a verdade é que ninguém te levará a Acapulco.
O mesmo se poderia dizer da nossa adolescência quando, sentindo-nos um pouco mais espertos, consideramo-nos imunes a histórias bobas de boa vizinhança. Eis que aí é justamente quando muitos são impiedosamente arrebatados pela vontade irresistível de torcer por algum casalzinho problemático da tv: uma dobradinha tipo Dawson e Joey, pra ficar só nos mais lesos, que sempre agradam aos adeptos do bom mocismo. Memória fraca, romântico(a)? Então experimente voltar a alguns episódios daquele seriado americano que você via (se é que ainda não vê) e simplesmente mooorra de vergonha. Sim, era trash demais. Mas no seu inconsciente, não negue: você ainda quer aquilo.
Só que não acabou! Eu continuo minha explanação, afinal, a coisa é mais grave. Porque não se trata apenas daquelas histórias magníficas em que o acaso une pessoas (a propósito, alguém aí já experimentou depender do acaso? Às vezes parece que ele não chega nunca...). Nem daquelas em que a efemeridade é poeticamente vivenciada pelas partes envolvidas que, supõe-se, devem ser sempre duas - embora em alguns casos até os triângulos pareçam lindos e esteticamente excelentes (vide Os sonhadores, Jules et Jim, etc). A gente até tenta zombar um pouco, tirar onda, dizer que “três, na vida real, não é amor, é gaaaaaia!” Mas no fundo, todo mundo segue acreditando. Nem que seja um pouco.
Enfim, como dizia, a coisa é mais grave porque não é só por meio de histórias deslumbrantes que nossos sonhos afetivos são alimentados. Em Hollywood - e muito além dela, na verdade (vide os exemplos anteriores) - até os fracassos amorosos são lindos. Como no filme que vi na sessão de sábado da Globo pela quarta ou quinta vez, em um momento de desespero e ócio: O casamento do meu melhor amigo. É fato que Julia Roberts se fode, mas é tão “fofinho” como tudo se resolve com dignidade e afeto! Repito: isso é muito, muito grave. Porque a dor de cotovelo causada pelo fracasso em uma disputa amorosa gera tudo, menos sentimentos nobres.
Isso tudo posto, confesso: eu continuo assistindo, vez por outra, a filmes assim. Mas me digam: quem não continua? Quem não precisa de uma ilusãozinha a 24 frames por segundo para suportar a desolação de uma tarde ruim?