Em 1999, Almodóvar nos apresentou a Agrado, um travesti dedicado e amoroso cuja missão a que se tinha atribuído na vida havia sido “agradar as pessoas”. Em um momento, Agrado rouba a cena, literalmente, ao aproveitar o espaço de uma apresentação teatral cancelada para mostrar que realmente ela tinha algo a dizer. Narrando a história de sua vida, o cuidado em apresentar cada uma das modificações corporais pelas quais passou, cada pequena intervenção cirúrgica realizada, era muito mais do que mera demonstração orgulhosa do que lhe proporcionava grande felicidade e satisfação. Significava, acima de tudo, que era impossível compreendê-la ignorando este percurso pelo qual ela, como muitas outras pessoas, intransigentemente vão ao encontro de si, constroem suas identidades e atribuem sentido às suas vidas. Clara, assim, ressoa a frase final de sua apresentação: "como dizia, sou uma mulher muito autêntica. Porque mais autênticos somos quanto mais parecemos com aquilo que sonhamos".
Com esta afirmação, Agrado diz muitas coisas. Primeiro, que a auto-determinação humana passa, sem dúvida, por um processo de conhecimento do próprio corpo, e que as identidades - sejam culturais, sexuais, políticas - são construídas e reconstruídas neste processo de emancipação, de afirmação das diferenças e de reconhecimento. É, em suma, uma criação. Ensina-nos também, então, que os argumentos tolos de que tais comportamentos e sexualidades não seriam naturais ignoram algo intrínseco ao ser humano: sua condição como um ser cultural, que desde seu surgimento (ao menos na forma como é concebido hoje pelas ciências humanas) está entendido e reconhecido como um ser que transforma a realidade, que age sobre a natureza e a transcende de muitas formas - seja por sua religião, suas crenças, seus hábitos, seu labor. Negar a legitimidade destas sexualidades múltiplas e que reconfiguram as noções de gênero é atribuir aos homens e mulheres uma condição menos que pré-histórica - afinal, desde lá o homem já transformava seu entorno, já produzia arte e significado sobre as coisas do mundo. Significa ignorar que a sexualidade, o desejo, o prazer, são subjetivos e, como tais, envolvem sentimentos, valores e experiências. Nem a estreiteza do determinismo biológico, nem a ingenuidade da consciente e voluntária “opção”: sexualidade, corpo e prazer são elementos indissociáveis à própria trajetória de uma vida e, como vida, nem sempre controláveis – embora de modo algum pré-determinados.
Agrado evoca a dimensão do sonho para nos falar do valor de – mesmo sob as condições mais adversas e contra as forças normalizantes – se tornar aquilo que se é. E, com este filme, Almodóvar nos ajuda a entender um pouco melhor esta outra perspectiva, nos mostra o autêntico e o sensível e nos comove, ao mesmo tempo em que nos faz pensar nas dificuldades e cicatrizes deixadas por este percurso que envolve, quase sempre, um enfrentamento direto com mentes que anseiam pelo homogêneo e, em suas limitações e abusos, oprimem e combatem as diferenças. Permitindo-nos conhecer o ponto de vista de Agrado, fazendo-a subir ao palco e contar sua história, a arte nos propicia este reconhecimento. Subverte, dando voz aos desvios, e mostra a legitimidade das motivações que justificam o silicone. Com isso, derruba alguns preconceitos.
Levando esta proposta bem mais longe, os atores do Coletivo Angu de Teatro sobem ao palco para falar diretamente à “sociedade recifense” com a peça Ópera. Na contramão dos muitos discursos que procuram obstinadamente combater o preconceito a partir da negação dos estereótipos e da defesa da igualdade, da idéia de que o homossexual deve “ser aceito e reconhecido como qualquer outro ser humano”, a proposta do espetáculo assume uma estratégia bem diferente. Contra a postura do politicamente correto que acaba por resvalar em opiniões pseudo-tolerantes mas que travestem um ímpeto inegavelmente homogeneizador – do tipo “ele é gay, mas é discreto” – Ópera escancara sua bichice e sobe ao palco munida de plumas, cores, sungas vazadas e salto alto para subverter moralismos a partir de uma diferença não-pasteurizada, não-diluída, e por modos de vida pautados por valores, relacionamentos e estéticas que não se enquadram no hegemônico. Modos de vida permeados por dores, adversidades, solidões e desencontros - como tantos - mas também de certo modo mais alegres, mais irreverentes: mais gay.
Resumir a peça à temática homoerótica seria reduzi-la. As formas a partir das quais as histórias nos são contadas apresentam em si um grande atrativo, ao trabalhar esteticamente as linguagens da radionovela, da fotonovela, da telenovela e da ópera. Difícil, no entanto, não se deter à questão da sexualidade, seja pela temática comum aos contos encenados, pela concepção estética do espetáculo, pela ênfase em assuntos comuns a este universo ou mesmo a forte presença do sexo – falado ou encenado – no palco. E, neste âmbito, a atenção especificamente voltada, em muitos momentos, para as questões do corpo e como ele está relacionado à construção das identidades pode-se justificar pelo fato de que talvez poucos estejam tão suscetíveis à crítica, à discriminação e marginalização quanto aqueles que não apenas se dedicam a práticas sexuais não estabelecidas pelo cânone como também sua própria auto-afirmação passa pela reconfiguração de seu corpo, e cuja vivência plena depende dessa corporeidade cambiante.
Assim, Pedro quer ser Petra e se reconhece como mulher desde criança, não obstante alguns “detalhes” de sua anatomia e a complicação que tal situação assume na chegada da puberdade. O que, para ele, seria a confirmação de sua feminilidade, chega de forma inusitada mas, ainda assim, torna-se motivo para uma alegria radiante. Do mesmo modo, a participação de Andrea Close cantando “we are beautiful, no matter what they say” deixa claro esta satisfação, esta felicidade subjacente à capacidade de conseguir emancipar-se ao ponto de, enfrentando a intolerância, dar ouvidos primeiramente à vontade obstinada de ser “plena”. Sentido semelhante assumiria, a propósito, o bordão “sou bela e feminina”, brincadeira afetada e recorrente do Las bibas from Vizcaya, um outro projeto que busca - nesse caso tendo como principal ferramenta a internet – associar uma estética do grotesco, do exagero, da subversão e da celebração gay ao universo midiático da música eletrônica e do ciberespaço.
A síntese das conexões (e até mesmo quebra) entre esta dualidade homem-mulher está representada no momento do espetáculo em que um ator apresenta um número musical com a técnica bastante conhecida e comum de promover um corte em sua caracterização, assumindo em um dos lados do corpo o cabelo, a maquiagem e a roupa de uma mulher e, no outro, os traços de um homem. A alternância dos lados de acordo com a música – quando o homem canta, quando a mulher canta – no melhor estilo “duetos” desemboca em um momento no qual o ator, virado frontalmente para a platéia, apresenta a um só tempo os dois lados diferentemente caracterizados, enquanto as vozes se sobrepõem no clímax da canção. Bastante significativo, pois deixa de haver alternância: são homem e mulher em um só corpo, e como papéis representados pelo mesmo homem/ator.
Mas nem tudo é tão simples. Não se trata apenas de inverter os valores, convocando a sociedade para uma apoteose do travestismo e da afetação. Recorrer a isso seria cair em um erro comum a muitos “militantes da causa” de simplesmente reconstruir os discursos sobre a sexualidade preservando sua pretensão totalizante. A relevância da peça consiste justamente em dar visibilidade a essa ampla gama de sexualidades possíveis. Não se trata de clamar pela supremacia gay: significa, antes, colocar essas categorizações em cheque.
Lembremos Madame Satã, a grande obra de Karim Ainouz. Em determinado instante, o personagem-título brada: “sou bicha porque quero, e não deixo de ser homem por isso”. Negar ao indivíduo que se interessa por pessoas do mesmo sexo a possibilidade de afirmar-se enquanto homem é um efeito ideológico comum. Seguindo esta linha de raciocínio, ser homossexual, bissexual ou afins implicaria renunciar à masculinidade. Mas, repetimos, nem tudo é tão simples. O elogio à discrição não poderia ser simplesmente combatido com a louvação ao estardalhaço, e Ópera não ignora este ponto. Logo após a performance da transexual Andrea Close, os atores que anteriormente haviam povoado o palco em cima de saltos e cobertos de plumas retornam ao mesmo e se despem, desfazendo-se de seus apetrechos, para vestir suas roupas - cada uma com seu estilo, mas todas perceptivelmente “masculinas”, ou seja, remetendo ao vestuário que, como elemento simbólico, representa este gênero. O próprio ato de despir-se e vestir-se frente ao público remete a esta questão das identidades, à construção de papéis socialmente compartilhados, como estes são assumidos, trabalhados e combinados em cada indivíduo. A mensagem parece indubitável: podemos ser mulheres, podemos ser homens, e podemos também ser muitas outras coisas além disso. Assim, a contemplação de sexualidades “fora dos padrões” não necessariamente implica uma renúncia à identidade masculina; pode, antes, estendê-la, reconfigurá-la, transbordá-la. Do mesmo modo, a explicitação de uma cultura e um modo de vida gays não precisa descambar para o exotismo, para a encenação ridicularizante, desumanizadora, que desrespeita as nuances. Neste sentido, o espetáculo é político, se posiciona. O que rejeita, na forma como se coloca, é a reverência com que se cultiva, em outros espaços e com certas idéias limitadoras, a “seriedade”, a sisudez.
Como dito, trata-se antes de colocar as categorizações em cheque. Sabemos que há um amplo impulso social para a explicitação das práticas sexuais – vide o empenho de Foucault em estudar os processos e mecanismos pelos quais se dá a incitação aos discursos – e que a “vontade de saber” convoca os indivíduos a “dizerem a sua verdade”, embora, para tanto, sejam levados a definir-se a partir dos termos socialmente estabelecidos. Assim, são enquadrados em categorias rígidas e atomizadas, nas quais as subjetividades são reduzidas às concepções vagas, homogeneizantes e questionáveis do que implicaria ser heterossexual, homossexual, bissexual. Os próprios movimentos que tratam desta questão parecem ter-se dado conta disso, uma vez que o que era gls virou lgbtt – e tudo leva a crer que novas letrinhas venham somar-se as já “categorizadas”.
Talvez se trate menos de escolher as letras – ou, o que é pior, alinhá-las em uma sigla, por “ordem de prioridade” – mas conceber a discussão da diversidade realmente a partir desta idéia, a diversidade, ou seja, vendo-se cada indivíduo como único, múltiplo, e admitindo que, embora seja reconhecida a importância dos movimentos aglutinadores, estes não podem perder-se em seu discurso e, na ânsia de combater preconceitos, reproduzir uma “ética heterossexual” – recorrendo a uma outra idéia de Foucault - com um discurso invertido, de defesa intransigente da estética do arco-íris. A favor desta concepção mais sensível das subjetividades que compõem a sexualidade, recordemos que algumas formas de vida socialmente rechaçadas no passado hoje são mais bem aceitas e que o que hoje é tabu amanhã poderá ser encarado com maior naturalidade. Não se trata apenas, então, das estratégias de defesa de uma única e determinada “categoria”, mas de rever os próprios mecanismos sociais que geram intolerância. Se a autenticidade reside na forma como nos aproximamos dos nossos sonhos, convém buscar menos respostas, conviver melhor com as incertezas, com o subjetivo, com o diferente. Afinal, os sonhos não são categorizáveis.