quarta-feira, fevereiro 14, 2007

a negação e a legitimidade de alguns sentimentos

Eu compartilho do sentimento de perplexidade e revolta que toma conta de tantas pessoas, diante das recentes atrocidades das quais temos tomado conhecimento nestes últimos dias. Eu também me sinto desolado. Acredito, no entanto, que diante de tais fatos convém repensar e fortalecer as bases sobre as quais estão estabelecidas as relações de convivência e as instâncias a partir das quais se funda a vida em sociedade.

De nada nos serve o clima irracional de caça às bruxas. Afinal, a parcialidade de uma mídia que decide qual crime hediondo será motivo de comoção nacional e quais passarão em branco é no mínimo suspeita e nos leva a questionar sob que critérios se busca formatar a nossa revolta, e a partir de que perspectiva. Parece-me claro que, por mais brutal que um crime possa parecer, as formas de reagir a ele estão condicionadas a questões como o tipo de indivíduo que o comete, com que propósitos e, acima de tudo, sobre quem recai este ato. Resumindo em uma pergunta: que concepções políticas, posturas e crenças estão implicadas neste “recorte” a partir do qual a opinião pública enxerga os fatos e define sua forma de posicionar-se, reagir e contra-atacar?

Na entrevista "exclusivíssima" concedida ao Fantástico, no último domingo, pelos pais do garoto morto no Rio, o formato exibido, o teor de algumas perguntas e a ênfase em determinadas falas e respostas, como aquela proferida pela mãe do garoto e repetida à exaustão de que "eles" (os criminosos) "não têm sentimento", "não têm coração", demonstram como o grau de atenção e seriedade posto em cada um desses eventos chocantes varia e está condicionado a fatores que não devem ser ignorados, inclusive interesses diversos.

Eu sei o quanto é delicado fazer este tipo de crítica em um momento em que as pessoas estão convencidas de que a revolta é necessária, de que todos os limites foram quebrados e de que se faz necessário questionar o grau de perversidade e o caráter irrecuperável de certas pessoas. Sim, eu também fiquei chocado e considerando a possibilidade de que alguns indivíduos são extremamente danosos à sociedade e - porque desprovidos de amor e de um mínimo de espiritualidade - talvez sejam também irrecuperáveis. Apenas chamo a atenção para um ponto importantíssimo: o depoimento da mãe, por mais comovente e justificável que seja, dado o momento e as circunstâncias, é equivocado. Porque eles, os criminosos, têm sentimentos sim: sentem ódio, indiferença, desencanto, dentre muitos outros. Um ódio de classe de tal modo rancoroso que não se trata apenas de tomar aos outros o que lhes falta. Trata-se, sim, de praticar atos perversos contra os diferentes: os que possuem uma vida melhor, mais feliz e cheia de possibilidades que as suas. Daí também porque a atitude aparentemente injustificável de matar mesmo aqueles que não apresentam reação, de agir com perversidade mesmo quando isso é absolutamente desnecessário, de matar uma criança mesmo quando objetos de valor, dinheiro e carro já foram entregues, se repete com freqüência vertiginosa. A causa é o ódio: um sentimento forte e, ao contrário do que se busca argumentar, muito humano.

Assim, está claro que, por mais comovidos que possamos ficar com a brutalidade cometida contra este ser inocente e indefeso, não podemos esquecer que esta barbárie não é mais novidade para ninguém e acomete crianças e jovens em todos os lugares, sobretudo nas periferias, nas margens dos grandes centros. Igualmente impossível de ignorar é o fato de que o crime foi cometido por menores pobres contra uma criança de classe média – tudo isto em um momento em que as elites, cientes dos efeitos desastrosos da desigualdade e cada vez mais encurraladas e ameaçadas em sua ilusão de felicidade – clamam pelo confinamento absoluto dos marginais, como a última tentativa de se obter um sossego impossível. A redução da maioridade se apresenta, assim, como mais um efeito paliativo de “higienização social” que busca segregar e isolar os excluídos. Estes últimos, por sua vez, parecem cada vez menos dispostos à resignação e mais desacreditados com relação aos princípios legais e morais sobre os quais a coletividade busca se estabelecer.

É evidente que a legislação precisa ser revista e que a Justiça, em nosso país, anda muito mal das pernas, desde sempre. Trata-se, no entanto, de fortalecê-la, cobrando sua efetiva capacidade de estabelecer a ordem e garantir o convívio - jamais aprofundar os mecanismos que geram as desigualdades e os artificialismos de uma tranqüilidade fundamentada na "ética global". Neste sentido, recorro às idéias de Beatriz Sarlo em seu livro "Tempo presente: notas sobre a mudança de uma cultura", surpreendemente apropriadas ao tema:

“Os meios de comunicação colocam-se ao lado das vítimas, pois elas, as vítimas, não estão interessadas na construção de um caso judicial baseado em provas e que dê todas as garantias processuais e probatórias aos suspeitos de delinqüir; pedem, simplesmente, um castigo direto e sumário. E expressam isso quando afirmam, diante das câmeras de televisão, que os delinqüentes são animais e, portanto, não têm qualquer direito. Esse discurso é compreensível quando parte das vítimas. Elas sentem a dor da perda ou a humilhação da violência sofrida e seu discurso não é baseado na perspectiva da existência de um princípio de justiça para todos. Só mesmo de longe, à distância dessa dor, é possível garantir a imparcialidade do julgamento. No entanto o julgamento tem sido feito pelos meios audiovisuais de acordo com os costumes dos regimes não-republicanos: sumariamente. Por sorte, eles não são instâncias judiciais verdadeiras. A pior Justiça, a mais lenta e mais torpe, é preferível a um veredicto populista, no qual a dramatização demagógica do crime resulta em uma ausência total de garantias. A Justiça deve sempre se basear em garantias, e os meios audiovisuais são, na prática e na teoria, contrários às garantias. Comportam-se como vítimas, e não o são. Uma reação compreensível quando vem de vítimas indefesas passa a ser agitação antiinstitucional quando parte dos meios de comunicação.

As vítimas exigem do Estado o que este deve dar – segurança – e exigem como podem. Os meios de comunicação tendem a colocar-se no lugar imaginário de uma das esferas do Estado, a da Justiça, e não podem nem distribuir justiça nem garantir segurança. Além do mais, não cumprem sua tarefa de informar razoavelmente”.

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