De nada nos serve o clima irracional de caça às bruxas. Afinal, a parcialidade de uma mídia que decide qual crime hediondo será motivo de comoção nacional e quais passarão em branco é no mínimo suspeita e nos leva a questionar sob que critérios se busca formatar a nossa revolta, e a partir de que perspectiva. Parece-me claro que, por mais brutal que um crime possa parecer, as formas de reagir a ele estão condicionadas a questões como o tipo de indivíduo que o comete, com que propósitos e, acima de tudo, sobre quem recai este ato. Resumindo em uma pergunta: que concepções políticas, posturas e crenças estão implicadas neste “recorte” a partir do qual a opinião pública enxerga os fatos e define sua forma de posicionar-se, reagir e contra-atacar?
Na entrevista "exclusivíssima" concedida ao Fantástico, no último domingo, pelos pais do garoto morto no Rio, o formato exibido, o teor de algumas perguntas e a ênfase em determinadas falas e respostas, como aquela proferida pela mãe do garoto e repetida à exaustão de que "eles" (os criminosos) "não têm sentimento", "não têm coração", demonstram como o grau de atenção e seriedade posto em cada um desses eventos chocantes varia e está condicionado a fatores que não devem ser ignorados, inclusive interesses diversos.
Eu sei o quanto é delicado fazer este tipo de crítica em um momento em que as pessoas estão convencidas de que a revolta é necessária, de que todos os limites foram quebrados e de que se faz necessário questionar o grau de perversidade e o caráter irrecuperável de certas pessoas. Sim, eu também fiquei chocado e considerando a possibilidade de que alguns indivíduos são extremamente danosos à sociedade e - porque desprovidos de amor e de um mínimo de espiritualidade - talvez sejam também irrecuperáveis. Apenas chamo a atenção para um ponto importantíssimo: o depoimento da mãe, por mais comovente e justificável que seja, dado o momento e as circunstâncias, é equivocado. Porque eles, os criminosos, têm sentimentos sim: sentem ódio, indiferença, desencanto, dentre muitos outros. Um ódio de classe de tal modo rancoroso que não se trata apenas de tomar aos outros o que lhes falta. Trata-se, sim, de praticar atos perversos contra os diferentes: os que possuem uma vida melhor, mais feliz e cheia de possibilidades que as suas. Daí também porque a atitude aparentemente injustificável de matar mesmo aqueles que não apresentam reação, de agir com perversidade mesmo quando isso é absolutamente desnecessário, de matar uma criança mesmo quando objetos de valor, dinheiro e carro já foram entregues, se repete com freqüência vertiginosa. A causa é o ódio: um sentimento forte e, ao contrário do que se busca argumentar, muito humano.
Assim, está claro que, por mais comovidos que possamos ficar com a brutalidade cometida contra este ser inocente e indefeso, não podemos esquecer que esta barbárie não é mais novidade para ninguém e acomete crianças e jovens em todos os lugares, sobretudo nas periferias, nas margens dos grandes centros. Igualmente impossível de ignorar é o fato de que o crime foi cometido por menores pobres contra uma criança de classe média – tudo isto em um momento em que as elites, cientes dos efeitos desastrosos da desigualdade e cada vez mais encurraladas e ameaçadas em sua ilusão de felicidade – clamam pelo confinamento absoluto dos marginais, como a última tentativa de se obter um sossego impossível. A redução da maioridade se apresenta, assim, como mais um efeito paliativo de “higienização social” que busca segregar e isolar os excluídos. Estes últimos, por sua vez, parecem cada vez menos dispostos à resignação e mais desacreditados com relação aos princípios legais e morais sobre os quais a coletividade busca se estabelecer.
É evidente que a legislação precisa ser revista e que a Justiça, em nosso país, anda muito mal das pernas, desde sempre. Trata-se, no entanto, de fortalecê-la, cobrando sua efetiva capacidade de estabelecer a ordem e garantir o convívio - jamais aprofundar os mecanismos que geram as desigualdades e os artificialismos de uma tranqüilidade fundamentada na "ética global". Neste sentido, recorro às idéias de Beatriz Sarlo em seu livro "Tempo presente: notas sobre a mudança de uma cultura", surpreendemente apropriadas ao tema:
“Os meios de comunicação colocam-se ao lado das vítimas, pois elas, as vítimas, não estão interessadas na construção de um caso judicial baseado em provas e que dê todas as garantias processuais e probatórias aos suspeitos de delinqüir; pedem, simplesmente, um castigo direto e sumário. E expressam isso quando afirmam, diante das câmeras de televisão, que os delinqüentes são animais e, portanto, não têm qualquer direito. Esse discurso é compreensível quando parte das vítimas. Elas sentem a dor da perda ou a humilhação da violência sofrida e seu discurso não é baseado na perspectiva da existência de um princípio de justiça para todos. Só mesmo de longe, à distância dessa dor, é possível garantir a imparcialidade do julgamento. No entanto o julgamento tem sido feito pelos meios audiovisuais de acordo com os costumes dos regimes não-republicanos: sumariamente. Por sorte, eles não são instâncias judiciais verdadeiras. A pior Justiça, a mais lenta e mais torpe, é preferível a um veredicto populista, no qual a dramatização demagógica do crime resulta em uma ausência total de garantias. A Justiça deve sempre se basear em garantias, e os meios audiovisuais são, na prática e na teoria, contrários às garantias. Comportam-se como vítimas, e não o são. Uma reação compreensível quando vem de vítimas indefesas passa a ser agitação antiinstitucional quando parte dos meios de comunicação.
As vítimas exigem do Estado o que este deve dar – segurança – e exigem como podem. Os meios de comunicação tendem a colocar-se no lugar imaginário de uma das esferas do Estado, a da Justiça, e não podem nem distribuir justiça nem garantir segurança. Além do mais, não cumprem sua tarefa de informar razoavelmente”.
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