Nessa existência um pouco irritada de apatia e melancolia cotidianas, nem sempre enxergo com sensibilidade os sutis caminhos da identificação solidária e cúmplice, tampouco da comoção que tal sentimento de aproximação a realidades indistintas proporciona.
Se há algo, no entanto, capaz de mascarar qualquer vulgaridade e mesquinhez possivelmente atribuídas ao ser humano, às vezes tão único e avulso em sua solitária luta e penar cotidianos, e emocionar-me, é aquele esforço quase sobre-humano de árduo trabalho, sobrevivência e construção de uma dignidade inalienável.
Assim, encontro-me ainda um pouco comovido, sempre, ao relembrar uma expressão timidamente humilde, não obstante de uma mulher forte, trabalhando com afinco pela construção de uma possibilidade que o tão elogiado senso coletivo não lhe proporcionou. Envergonhada, sem saber bem de quê, calada pelo receio de falar, pela suposta falta de modos, pela inadequação àquele tipo de exposição, àquela situação em que se encontrava, tão perdida, tão rodeada de rostos bem cuidados e personalidades impenetráveis, irredutíveis em sua certeza petulante de suposta superioridade, enfim, mal cabendo em si de tão deslocada, numa sensação de incômoda timidez, simplesmente trabalhava.
Vendia pequenos lanches, a preços módicos e com muita dificuldade, superando preconceitos advindos de mentalidades grandiosas. Eram apenas lanches, algo para matar a fome, algo barato, simples, desprovido de sofisticação e arrogância produtiva. Lanches, apenas, feitos com capricho, imagino, e cuja comercialização renderia uma modesta renda, talvez... Para sua família? Para si, somente? Apenas suponho.
E ela que era toda inadequação, as palavras engasgando, ditas de forma titubeante ainda que orgulhosa... Sim, orgulho!, do tipo que só a sua dignidade poderia proporcionar. Dignidade conquistada com honestidade, trabalho, esperança - e força, sobretudo. Arrisco-me, sim, a falar em sua honestidade, embora não a conheça, mas acredito ainda na existência dessa honestidade que floresce da humildade, da solidariedade e do amor familiar, da força encontrada nessa paixão pela sobrevivência, pela vitória diária do ganho, dos frutos do esforço e da perseverança popular.
Vendeu apenas um lanche, naquele dia, para aquelas tantas pessoas. O que sobrou estragaria? Seria uma perda, um prejuízo para alguém já tão sem recursos? As respostas não tive, nem preciso, porque sei que a luta continuaria a cada hora seguinte, sua decepção pela impossibilidade de interação permaneceria velada e sua força seria maior, bem maior que a minha, certamente, que ainda sirvo-me apenas do fruto de outros trabalhos, de um suor que não é o meu.
Não era mesmo para aquelas pessoas, aquele lanche. Eles todos tão bons, tão cheios de posse, não haveriam mesmo de comer ali, em pé, no calor, um simples lanche barato. Mas eu fiquei ainda, sempre, com a lembrança silenciosa do fruto daquele e de outros trabalhos e do suor de pessoas tão próximas, fruto e suor estes consumidos às vezes aos tropeços, à revelia e impensadamente - desatino de uma insensibilidade injustificável.
Eu também estive lá, em pé, no calor, mas sem comer, igualmente. Fome eu já não tinha, mesmo.
sexta-feira, outubro 01, 2004
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