De muitos e muitos anos incríveis...
Essa música eu nem sei dizer o que significa pra mim, tantos foram os significados que ela incorporou ao longo dos anos... :p
God only knows - Beach boys
I may not always love you
But long as there are stars above you
You never need to doubt it
I'll make you so sure about it
God only knows what I'd be without you
If you should ever leave me
Though life would still go on believe me
The world could show nothing to me
So what good would living do me
God only knows what I'd be without you
sexta-feira, outubro 29, 2004
Nem acreditei que voltará a ser exibido em canal aberto a série de TV Anos Incríveis. Vamos ao que interessa: esqueçam todo o insuportável patriotismo exacerbado norte-americano, porque dado esse devido desconto, digo que esse é o melhor programa de entretenimento simples da televisão, de todos os tempos. Muitas risadas inteligentes e, diria até, momentos de emoção sincera (putz, eu era criança ainda quando comecei a assistir, dêem um desconto :p).
O que pretendo comentar mesmo com mais calma, depois, é a trilha sonora, simplesmente a melhor já feita para qualquer coisa na televisão (só rock e folk dos anos 60, além de alguns clássicos da música popular).
Beatles, Jefferson Airplane, Joni Mitchell, Neil Young, Jimi Hendrix, Richie Havens, Otis Redding, Bob Dylan, The Doors, Simon and Garfunkel, The Who, Joan Baez, Judy Collins, Sly And The Family Stone, Beach Boys… A lista continua indefinidamente.
Ok, já somos todos grandinhos, mas se puderem conferir as aventuras e desventuras de Kevin Arnold, Paul Pfeifer e Winnie Cooper, embaladas pelo som e todo o contexto histórico do final dos anos 60 e início dos anos 70... Enfim, se quiserem assistir a ótimas histórias inteligentíssimas e bem-humoradas sobre jovens que crescem numa época de Woodstock, Guerra do Vietnã, efervescência do rock and roll, movimento hippie e tudo mais, creio que não fará mal lembrar um pouco da infância, tendo visto ou não a série (os temas que se desenvolvem ao longo dos 115 episódios são, na verdade, atemporais, apesar da época específica em que se passa a história). A identificação creio que é imediata e a satisfação, diria que é garantida.
Para assistir: Anos Incríveis, de segunda a sexta, a partir do dia 01, às 18:30, na Cultura
O que pretendo comentar mesmo com mais calma, depois, é a trilha sonora, simplesmente a melhor já feita para qualquer coisa na televisão (só rock e folk dos anos 60, além de alguns clássicos da música popular).
Beatles, Jefferson Airplane, Joni Mitchell, Neil Young, Jimi Hendrix, Richie Havens, Otis Redding, Bob Dylan, The Doors, Simon and Garfunkel, The Who, Joan Baez, Judy Collins, Sly And The Family Stone, Beach Boys… A lista continua indefinidamente.
Ok, já somos todos grandinhos, mas se puderem conferir as aventuras e desventuras de Kevin Arnold, Paul Pfeifer e Winnie Cooper, embaladas pelo som e todo o contexto histórico do final dos anos 60 e início dos anos 70... Enfim, se quiserem assistir a ótimas histórias inteligentíssimas e bem-humoradas sobre jovens que crescem numa época de Woodstock, Guerra do Vietnã, efervescência do rock and roll, movimento hippie e tudo mais, creio que não fará mal lembrar um pouco da infância, tendo visto ou não a série (os temas que se desenvolvem ao longo dos 115 episódios são, na verdade, atemporais, apesar da época específica em que se passa a história). A identificação creio que é imediata e a satisfação, diria que é garantida.
Para assistir: Anos Incríveis, de segunda a sexta, a partir do dia 01, às 18:30, na Cultura
quinta-feira, outubro 28, 2004
A pressa tem o seu preço. Não se exige tudo em um único instante, com a máxima urgência, impunemente. Corre-se o risco sempre considerável da frustração ou do atropelo – sensações não totalmente remoídas acumulando-se, cristalizando-se na mais pura incerteza e imprecisão.
Perigoso mesmo, ainda, é condicionar o entusiasmo ao movimento constante. Uma hora desacelera-se, e a motivação pode sumir.
O temor à calmaria leva a isso: desaprende-se a viver o silêncio. Rejeita-se a linearidade, a tranqüilidade. Exige-se tudo, agora.
“- A paciência é a maior das virtudes.
- A impaciência também tem seus direitos!”
Lavoura arcaica
Perigoso mesmo, ainda, é condicionar o entusiasmo ao movimento constante. Uma hora desacelera-se, e a motivação pode sumir.
O temor à calmaria leva a isso: desaprende-se a viver o silêncio. Rejeita-se a linearidade, a tranqüilidade. Exige-se tudo, agora.
“- A paciência é a maior das virtudes.
- A impaciência também tem seus direitos!”
Lavoura arcaica
segunda-feira, outubro 25, 2004
Eu fiz esse texto em maio deste ano, quando ainda nem tinha um blog, e confesso que nunca pensei realmente em postá-lo. Tive, no entanto, boas notícias nesse fim-de-semana que me fizeram lembrar um pouco dele. Ainda bem que a saudade às vezes recebe um alento, e os olhos podem chorar, também, pela mais autêntica felicidade...
Os olhos da minha avó
Quando criança, costumava pensar no semblante dos mais velhos como uma inerte expressão da experiência, dos anos... Qualquer sinal de alteração em seus traços era por mim tomado como próprio da idade, e nada tinha a ver com circunstâncias concretas, do momento.
Era, pois, um mistério decifrar o que comunicavam as linhas da face, olhos e lábios não mais tão terminantes, repletos do efeito do tempo. Optava, então, por considerar essa hipótese de uma falsa lenda por mim criada de que os velhos não tinham o mesmo controle que eu de suas feições, e ao passo que eu conseguia disfarçar a pior das tristezas com um sorriso amargo, para eles me parecia impossível resistir aos caprichos de músculos e tecidos que não respeitavam as emoções neles refletidas.
Foi assim que minha avó, sutilmente, alimentou minha falsa percepção do mundo quando um dia, pondo-se a lembrar de um filho que há muito partira e do qual hoje não se sabia notícia, a não ser que estava completamente solto, em uma cidade de abandonados, deixou-se encher os olhos d’água, que se percebia por sob as lentes dos seus óculos de grossa armação. Observando aquela cena com uma indiferença de quem carece de emotividade, perguntei de forma quase casual:
- Você está chorando, vó?
- Não, meu filho, é a idade... Quando a gente fica velho, os olhos começam a ficar assim, correndo água...
E deixou-se ficar imóvel, por um momento, até que prontamente ergueu um pouco seus óculos e enxugou sua tristeza. Mais não lembro, apenas suponho que a conversa foi invadida pelo trivial, enquanto sentimentos eram mais uma vez submergidos na introspecção da experiência.
Naquele dia, prontamente acreditei que aqueles olhos fundos e sempre tão brilhantes choravam por acaso, pois a dor da saudade e da distância não tinham ainda, para mim, grandes dimensões, de modo que parecia razoável que uma lembrança sumisse assim, leviana, de uma conversa, sem causar nenhum abalo.
Tal distanciamento entre meus poucos anos e a maturidade que se me apresentava diminuiu, quebrando a equivocada idéia de que os adultos eram sempre previsíveis, sérios, irredutíveis e quase gélidos em sua praticidade. Mas naquela ocasião parecia, então, que só os imaturos sofriam diante do inevitável.
Terna lembrança de uma época de ingenuidade, em que acreditava que os mais velhos não choravam, e qualquer evidência de uma lágrima não era mais que uma simples e pura manifestação natural de um corpo não mais tão certo de si.
06 de Maio de 2004
Os olhos da minha avó
Quando criança, costumava pensar no semblante dos mais velhos como uma inerte expressão da experiência, dos anos... Qualquer sinal de alteração em seus traços era por mim tomado como próprio da idade, e nada tinha a ver com circunstâncias concretas, do momento.
Era, pois, um mistério decifrar o que comunicavam as linhas da face, olhos e lábios não mais tão terminantes, repletos do efeito do tempo. Optava, então, por considerar essa hipótese de uma falsa lenda por mim criada de que os velhos não tinham o mesmo controle que eu de suas feições, e ao passo que eu conseguia disfarçar a pior das tristezas com um sorriso amargo, para eles me parecia impossível resistir aos caprichos de músculos e tecidos que não respeitavam as emoções neles refletidas.
Foi assim que minha avó, sutilmente, alimentou minha falsa percepção do mundo quando um dia, pondo-se a lembrar de um filho que há muito partira e do qual hoje não se sabia notícia, a não ser que estava completamente solto, em uma cidade de abandonados, deixou-se encher os olhos d’água, que se percebia por sob as lentes dos seus óculos de grossa armação. Observando aquela cena com uma indiferença de quem carece de emotividade, perguntei de forma quase casual:
- Você está chorando, vó?
- Não, meu filho, é a idade... Quando a gente fica velho, os olhos começam a ficar assim, correndo água...
E deixou-se ficar imóvel, por um momento, até que prontamente ergueu um pouco seus óculos e enxugou sua tristeza. Mais não lembro, apenas suponho que a conversa foi invadida pelo trivial, enquanto sentimentos eram mais uma vez submergidos na introspecção da experiência.
Naquele dia, prontamente acreditei que aqueles olhos fundos e sempre tão brilhantes choravam por acaso, pois a dor da saudade e da distância não tinham ainda, para mim, grandes dimensões, de modo que parecia razoável que uma lembrança sumisse assim, leviana, de uma conversa, sem causar nenhum abalo.
Tal distanciamento entre meus poucos anos e a maturidade que se me apresentava diminuiu, quebrando a equivocada idéia de que os adultos eram sempre previsíveis, sérios, irredutíveis e quase gélidos em sua praticidade. Mas naquela ocasião parecia, então, que só os imaturos sofriam diante do inevitável.
Terna lembrança de uma época de ingenuidade, em que acreditava que os mais velhos não choravam, e qualquer evidência de uma lágrima não era mais que uma simples e pura manifestação natural de um corpo não mais tão certo de si.
06 de Maio de 2004
No divã, delírios lynchianos
- Um episódio sem importância, mas ilustrativo? Eu deveria mencionar um? O que seria? Creio que não há nada que ateste essa minha, digamos, imersão em pensamentos desligados da realidade... Nada que me caracterize como uma pessoa que fantasie o que me rodeia... Mas há um fato talvez relacionado a isto a que você se refere... É sobre o que acontece nessa época do ano comigo... Nesse mês, há frutos nas árvores da cidade amadurecendo, caindo...
- Sim, fale um pouco mais sobre isso.
- Então... Daí eu ando na rua e tem aqueles... aqueles frutos...
- Sim... prossiga.
- Você sabe... Aqueles frutos amadurecidos, caídos no chão, de cor púrpura...
- Jambos...
- Isso! Jambos... E eles estão em toda parte, amassados, pisados, e para mim, não importa quantas vezes os veja, sempre parecem pequenos animais mortos... sabe? Morcegos atropelados ou pisados, no chão... Ou pequenos pássaros, seus corpos dilacerados na queda e no movimento da rua, pessoas pisando, carros passando... Às vezes parecem... como posso dizer? Você já viu pequenos passarinhos que ainda estão por nascer, quando de repente quebramos a casca do ovo? Eles se retorcem, agonizam num desespero mudo, asfixiados, seu corpo ainda não preparado para esse contato prematuro, forçado, com o mundo... E eles morrem, ressecam e ficam assim, de cor púrpura, retorcidos, a pele seca, apodrecendo... É isso: como pequenos embriões não nascidos, jogados nas calçadas, apodrecendo... Fetos! Nossa, parecem mesmo fetos... Ou às vezes, ainda, parecem pequenos membros, decepados, desfigurados, restos humanos jogados em calçadas..
- ...
- Isso é grave, doutor?
- Um episódio sem importância, mas ilustrativo? Eu deveria mencionar um? O que seria? Creio que não há nada que ateste essa minha, digamos, imersão em pensamentos desligados da realidade... Nada que me caracterize como uma pessoa que fantasie o que me rodeia... Mas há um fato talvez relacionado a isto a que você se refere... É sobre o que acontece nessa época do ano comigo... Nesse mês, há frutos nas árvores da cidade amadurecendo, caindo...
- Sim, fale um pouco mais sobre isso.
- Então... Daí eu ando na rua e tem aqueles... aqueles frutos...
- Sim... prossiga.
- Você sabe... Aqueles frutos amadurecidos, caídos no chão, de cor púrpura...
- Jambos...
- Isso! Jambos... E eles estão em toda parte, amassados, pisados, e para mim, não importa quantas vezes os veja, sempre parecem pequenos animais mortos... sabe? Morcegos atropelados ou pisados, no chão... Ou pequenos pássaros, seus corpos dilacerados na queda e no movimento da rua, pessoas pisando, carros passando... Às vezes parecem... como posso dizer? Você já viu pequenos passarinhos que ainda estão por nascer, quando de repente quebramos a casca do ovo? Eles se retorcem, agonizam num desespero mudo, asfixiados, seu corpo ainda não preparado para esse contato prematuro, forçado, com o mundo... E eles morrem, ressecam e ficam assim, de cor púrpura, retorcidos, a pele seca, apodrecendo... É isso: como pequenos embriões não nascidos, jogados nas calçadas, apodrecendo... Fetos! Nossa, parecem mesmo fetos... Ou às vezes, ainda, parecem pequenos membros, decepados, desfigurados, restos humanos jogados em calçadas..
- ...
- Isso é grave, doutor?
quinta-feira, outubro 21, 2004
Deu no site do JC on line: "Café em excesso prejudica concentração nos estudos."
Quanto aos outros eu não sei, mas o que tem prejudicado de verdade meus estudos, e muito, é a vontade doida de dormir que me dá, toda vez que pego em um livro. :p Considero então a hipótese de aderir à moda do café. Assim, quem sabe, consigo ler mais de uma página por dia daquela infinidade de matérias e assuntos que nunca conseguirei contemplar neste breve período que me separa das provas no fim de novembro.
Dos males, o menor.
Quanto aos outros eu não sei, mas o que tem prejudicado de verdade meus estudos, e muito, é a vontade doida de dormir que me dá, toda vez que pego em um livro. :p Considero então a hipótese de aderir à moda do café. Assim, quem sabe, consigo ler mais de uma página por dia daquela infinidade de matérias e assuntos que nunca conseguirei contemplar neste breve período que me separa das provas no fim de novembro.
Dos males, o menor.
quarta-feira, outubro 20, 2004
A vista da minha janela proporciona sensações as mais variadas. Hoje, por exemplo, descobri que observar os carros que passam ao longe, na 17 de agosto, ao som de Sigur Ros, é experiência das mais esquisitas (ou minha esquisitice materializou-se, exaltada que foi pela música, nos pobres veículos nem um pouco culpados da minha esquisitice).
Acontece que minha janela, nessas últimas horas, decidiu virar protagonista das minhas horas, e absorveu-me com suas papagaiadas. Imagina só que ontem eu invento de dormir logo cedo – ganância de estudar quando o cérebro se recusa – e só acordo às 4h da manhã, sem nada a fazer, a não ser deixar que o mundo fale. E lá vou eu ver a rua tranqüila, imaginar os percursos e percalços de um transeunte que porventura se arriscasse a essa hora da madrugada. Seria bom? Seria ruim? A iluminação triste e amarelada, a quietude, o ar parado e cauteloso da noite, tudo lembra Drummond e diz que é bom ser livre nas ruas. Aquele sentimento de anacronismo me invade, vontade urgente não-realizada de passeios soltos, noites claras, bebidas baratas, romances de calçada e filosofias de praças. Meu fígado por uma zona boêmia qualquer, dos anos 50!
Mas digo papagaidas porque minha janela nem sempre é tão sisuda, e mostra coisas as mais variadas conforme o humor que o dia assume. Desde os fuscas e motocicletas velhas que sobem a ponte causando estampidos de assustar vizinhanças até verdadeiras cenas policiais de tiro e perseguição – minha janela tem um humor macabro que ainda não decifrei.
Nem tudo, pois, é felicidade na minha janela. Esse momento, assim, vazio, abandonado, traz reminiscências tristes do nada a fazer, da espera vã, do quieto desespero que nela revivo, separado que já me deixou, algumas vezes, do mundo.
A janela só me serve quando mostra algo que conheço, e quando me sinto capaz de descer até lá embaixo e viver. Porque nela, afinal, tudo passa longe: carros, pessoas, formigas...
Acontece que minha janela, nessas últimas horas, decidiu virar protagonista das minhas horas, e absorveu-me com suas papagaiadas. Imagina só que ontem eu invento de dormir logo cedo – ganância de estudar quando o cérebro se recusa – e só acordo às 4h da manhã, sem nada a fazer, a não ser deixar que o mundo fale. E lá vou eu ver a rua tranqüila, imaginar os percursos e percalços de um transeunte que porventura se arriscasse a essa hora da madrugada. Seria bom? Seria ruim? A iluminação triste e amarelada, a quietude, o ar parado e cauteloso da noite, tudo lembra Drummond e diz que é bom ser livre nas ruas. Aquele sentimento de anacronismo me invade, vontade urgente não-realizada de passeios soltos, noites claras, bebidas baratas, romances de calçada e filosofias de praças. Meu fígado por uma zona boêmia qualquer, dos anos 50!
Mas digo papagaidas porque minha janela nem sempre é tão sisuda, e mostra coisas as mais variadas conforme o humor que o dia assume. Desde os fuscas e motocicletas velhas que sobem a ponte causando estampidos de assustar vizinhanças até verdadeiras cenas policiais de tiro e perseguição – minha janela tem um humor macabro que ainda não decifrei.
Nem tudo, pois, é felicidade na minha janela. Esse momento, assim, vazio, abandonado, traz reminiscências tristes do nada a fazer, da espera vã, do quieto desespero que nela revivo, separado que já me deixou, algumas vezes, do mundo.
A janela só me serve quando mostra algo que conheço, e quando me sinto capaz de descer até lá embaixo e viver. Porque nela, afinal, tudo passa longe: carros, pessoas, formigas...
segunda-feira, outubro 18, 2004
...sessão descarrego...
“A vida tem seu jeito de nos ensinar...”
Relutei muito em escrever este post, mas há algo que precisa ficar bem reafirmado em algum lugar assim, visível, de fácil acesso para mim. Algumas coisas precisam ficar bem óbvias, explícitas, para não serem esquecidas.
É fato que em alguns momentos inevitavelmente nos perdemos. A primeira grande decepção pessoal a gente nunca esquece, e para mim, se deu há algum tempo atrás e foi do pior tipo: foi a decepção não por não ter atingido meus objetivos, mas por, ao atingi-los, perceber que em algum lugar, no meio do caminho, eles tinham perdido um pouco do seu sentido. Vai ver que foi aí que me perdi, quando desacreditei da idéia de que planejar, ter sonhos realizáveis, concretos e definidos em tempo e espaço era válido, e comecei a pensar que a vida era muito volátil para permitir qualquer meta, qualquer certeza ou direcionamento. Como diz uma personagem no filme mexicano “Amores brutos”: “Se queres fazer rir a Deus, conta-lhe teus planos.”
Um bom tempo se passou, afinal, e um pouco de maturidade talvez tenha sido somado às minhas parcas qualidades. A vida mostrou que é muito difícil, mesmo, saber que rumo os fatos tomarão e para onde seremos levados, uma vez que nosso bem estar - nossa paz de espírito, diria mesmo - depende de um sem-número de fatores... incontroláveis. Como um estalo, no entanto - ou melhor, não de forma assim tão brusca, mas como que num despertar, num instante de maior lucidez, em que uma névoa se dissipa e enxergamos melhor a verdade – percebi que mesmo quando frustrada, a ação nos leva a algum lugar. Nem sempre para onde esperamos, mas para algum lugar, sim, onde há o novo que nos espera... E é disso afinal que precisamos: do novo, da mudança, não aquela que nos atropela e nos deixa para trás, engolindo poeira, mas aquela que nós criamos intimamente, com o aprendizado, a disposição, o amor por nós mesmos e pelas possibilidades que podemos encontrar.
Assim, de espírito renovado por esse despertar afinal concretizado, sinto-me levado a planejar de novo, querer, sonhar com algo além da já tão difícil plenitude momentânea. É bom pensar o presente, celebrando cada hora, valorizando cada palavra que ouvimos, cada som, cada imagem, cada rosto amigo, cada beleza com a qual temos contato em um único minuto, o minuto do agora. Mas a individualidade é necessária - assim como a noção de que haverá, talvez, muitos minutos seguintes, e só nós podemos decidir o que faremos deles. E essa individualidade se constrói em convicções, em certezas íntimas, em algo maior que as circunstâncias. Quase como aquele amor que temos pelos nossos familiares, então, que independe de qualquer erro, qualquer mágoa, qualquer distância, assim acho que devemos também amar nossos princípios, nossos objetivos: independente de qualquer circunstância ou conjuntura que nos envolva, de qualquer falha ou desilusão. Porque a verdade é que, no fim, essa beleza momentânea, esses rostos amigos, essas palavras que ouvimos, essa música que escutamos, tudo pode ir embora, e é provável que o único elemento capaz de unir tantos instantes soltos ao longo de nossa existência não seja outro que não nós mesmos.
As pessoas vão embora, por motivos diversos. Algumas de forma mais suave, branda, simplesmente levadas por caminhos diferentes. Outras de forma abrupta, por meio de uma mágoa, um desinteresse repentino, uma ânsia de se desligar do que está ao redor e buscar outros semelhantes e outras histórias, ou, de forma mais trágica, deixando de existir entre nós. E a pior situação de todas deve ser encontrar-se com aquela sensação de que todos seguem adiante e você ficou pra trás, imutável, vendo todos ao longe e com um vazio impreenchível, tamanho o esvaziamento de qualquer resquício de ideais, tamanha a anulação, também, por meio da ingênua crença de que o bem e a satisfação estão sempre no ambiente externo, e nunca em si mesmo.
Essas palavras não são motivadas por uma ausência ou objetivo frustrado específico. Vêm antes da difícil avaliação que precisa às vezes ser feita, intimamente, de o que queremos ser, ou melhor, se seremos algo ou apenas um mero rascunho sempre alterável, de acordo com veleidades as mais variadas.
Vou citar ainda um outro filme (eles sempre me socorrem quando fico sem palavras).... Em “As horas”, uma personagem fala: “O que significa arrepender-se, quando não se tem escolha?” É assim que me sinto. Tudo o que faço e tenho feito é, no mínimo, honesto... Vem da espontaneidade, da vontade de ser verdadeiro comigo mesmo, da necessidade de acreditar que “essa vida, sem o amor, seria uma molecagem” (para não perder o hábito de citar Fernando Sabino).
Não é fácil preservar o amor-próprio nem a possibilidade de construir e de conciliar individualidade e a valorização do outro, evitando os extremos - o egoísmo ou a auto-anulação. Por isso escrevo: porque há dias em que a motivação nos some, o desânimo pesa, e quase que não podemos com aquele aperto, aquele nó que o medo nos impõe. E mais difícil ainda é agir e entender que essa ação nos leva, ao longo de dias ruins, ao encontro de momentos melhores. Por isso quero preservar esse instante em que tudo parece tão claro, em que tenho consciência do esforço necessário para corrigir posturas, para evitar atitudes impensadas que acabam fazendo mal. Por isso é que isto ficará escrito, mesmo que seja demasiadamente longo ou pessoal e, portanto, não desperte o interesse de muitos. É meu, reservo-me o direito a este espaço, nesse blog que tão necessário será ainda, para mim.
"Esse é só o começo do fim da nossa vida
Deixa chegar o sonho, prepara uma avenida
que a gente vai passar"
“A vida tem seu jeito de nos ensinar...”
Relutei muito em escrever este post, mas há algo que precisa ficar bem reafirmado em algum lugar assim, visível, de fácil acesso para mim. Algumas coisas precisam ficar bem óbvias, explícitas, para não serem esquecidas.
É fato que em alguns momentos inevitavelmente nos perdemos. A primeira grande decepção pessoal a gente nunca esquece, e para mim, se deu há algum tempo atrás e foi do pior tipo: foi a decepção não por não ter atingido meus objetivos, mas por, ao atingi-los, perceber que em algum lugar, no meio do caminho, eles tinham perdido um pouco do seu sentido. Vai ver que foi aí que me perdi, quando desacreditei da idéia de que planejar, ter sonhos realizáveis, concretos e definidos em tempo e espaço era válido, e comecei a pensar que a vida era muito volátil para permitir qualquer meta, qualquer certeza ou direcionamento. Como diz uma personagem no filme mexicano “Amores brutos”: “Se queres fazer rir a Deus, conta-lhe teus planos.”
Um bom tempo se passou, afinal, e um pouco de maturidade talvez tenha sido somado às minhas parcas qualidades. A vida mostrou que é muito difícil, mesmo, saber que rumo os fatos tomarão e para onde seremos levados, uma vez que nosso bem estar - nossa paz de espírito, diria mesmo - depende de um sem-número de fatores... incontroláveis. Como um estalo, no entanto - ou melhor, não de forma assim tão brusca, mas como que num despertar, num instante de maior lucidez, em que uma névoa se dissipa e enxergamos melhor a verdade – percebi que mesmo quando frustrada, a ação nos leva a algum lugar. Nem sempre para onde esperamos, mas para algum lugar, sim, onde há o novo que nos espera... E é disso afinal que precisamos: do novo, da mudança, não aquela que nos atropela e nos deixa para trás, engolindo poeira, mas aquela que nós criamos intimamente, com o aprendizado, a disposição, o amor por nós mesmos e pelas possibilidades que podemos encontrar.
Assim, de espírito renovado por esse despertar afinal concretizado, sinto-me levado a planejar de novo, querer, sonhar com algo além da já tão difícil plenitude momentânea. É bom pensar o presente, celebrando cada hora, valorizando cada palavra que ouvimos, cada som, cada imagem, cada rosto amigo, cada beleza com a qual temos contato em um único minuto, o minuto do agora. Mas a individualidade é necessária - assim como a noção de que haverá, talvez, muitos minutos seguintes, e só nós podemos decidir o que faremos deles. E essa individualidade se constrói em convicções, em certezas íntimas, em algo maior que as circunstâncias. Quase como aquele amor que temos pelos nossos familiares, então, que independe de qualquer erro, qualquer mágoa, qualquer distância, assim acho que devemos também amar nossos princípios, nossos objetivos: independente de qualquer circunstância ou conjuntura que nos envolva, de qualquer falha ou desilusão. Porque a verdade é que, no fim, essa beleza momentânea, esses rostos amigos, essas palavras que ouvimos, essa música que escutamos, tudo pode ir embora, e é provável que o único elemento capaz de unir tantos instantes soltos ao longo de nossa existência não seja outro que não nós mesmos.
As pessoas vão embora, por motivos diversos. Algumas de forma mais suave, branda, simplesmente levadas por caminhos diferentes. Outras de forma abrupta, por meio de uma mágoa, um desinteresse repentino, uma ânsia de se desligar do que está ao redor e buscar outros semelhantes e outras histórias, ou, de forma mais trágica, deixando de existir entre nós. E a pior situação de todas deve ser encontrar-se com aquela sensação de que todos seguem adiante e você ficou pra trás, imutável, vendo todos ao longe e com um vazio impreenchível, tamanho o esvaziamento de qualquer resquício de ideais, tamanha a anulação, também, por meio da ingênua crença de que o bem e a satisfação estão sempre no ambiente externo, e nunca em si mesmo.
Essas palavras não são motivadas por uma ausência ou objetivo frustrado específico. Vêm antes da difícil avaliação que precisa às vezes ser feita, intimamente, de o que queremos ser, ou melhor, se seremos algo ou apenas um mero rascunho sempre alterável, de acordo com veleidades as mais variadas.
Vou citar ainda um outro filme (eles sempre me socorrem quando fico sem palavras).... Em “As horas”, uma personagem fala: “O que significa arrepender-se, quando não se tem escolha?” É assim que me sinto. Tudo o que faço e tenho feito é, no mínimo, honesto... Vem da espontaneidade, da vontade de ser verdadeiro comigo mesmo, da necessidade de acreditar que “essa vida, sem o amor, seria uma molecagem” (para não perder o hábito de citar Fernando Sabino).
Não é fácil preservar o amor-próprio nem a possibilidade de construir e de conciliar individualidade e a valorização do outro, evitando os extremos - o egoísmo ou a auto-anulação. Por isso escrevo: porque há dias em que a motivação nos some, o desânimo pesa, e quase que não podemos com aquele aperto, aquele nó que o medo nos impõe. E mais difícil ainda é agir e entender que essa ação nos leva, ao longo de dias ruins, ao encontro de momentos melhores. Por isso quero preservar esse instante em que tudo parece tão claro, em que tenho consciência do esforço necessário para corrigir posturas, para evitar atitudes impensadas que acabam fazendo mal. Por isso é que isto ficará escrito, mesmo que seja demasiadamente longo ou pessoal e, portanto, não desperte o interesse de muitos. É meu, reservo-me o direito a este espaço, nesse blog que tão necessário será ainda, para mim.
"Esse é só o começo do fim da nossa vida
Deixa chegar o sonho, prepara uma avenida
que a gente vai passar"
sábado, outubro 16, 2004
É impossível para mim comprar algo para vestir sem chegar à triste conclusão de que algum dia ainda andarei nu e descalço por aí, tamanha é a minha estupefação com a falta de limites da indústria do consumo.
Não me refiro aqui àquelas excentricidades de milhares de dólares que os muito ricos compram em lojas luxuosas para exibir-se. A questão, na verdade, são aqueles estabelecimentos que atendem à classe média, abarrotados de produtos caríssimos cujo único mérito é possuir um nome conhecido, e que graças a isso conquistaram entre a população o status de qualidade e diferenciação.
Como alguém pode ser capaz, por exemplo, de pagar R$ 250,00 ou R$ 300,00 em um simples tênis, que não serve para mais nada senão calçar os pés e contribuir para o bem estar físico e a estética de um indivíduo? Antes, ainda: como chegamos a esse ponto em que empresas são capazes de elevar de forma absurda seus preços, apenas por contarem com uma poderosa grife, e fazem isso com a ampla compreensão e aceitação das pessoas, que não enxergam absurdo algum nessa situação que, analisada mais atentamente, revela-se um verdadeiro contra-senso?
Talvez eu devesse ser um dos mais aptos a responder a essa questão, dada a minha formação acadêmica, mas a verdade é que, além de qualquer explicação mercadológica de necessidades de consumo, técnicas de diferenciação de produtos, fortalecimento da marca, etc, o que me falta é o entendimento de como chegamos a tal nível de sacrifício, em que meros objetos são valorados de forma irreal, criando padrões de consumo insustentáveis em longo prazo para todos e, desde já, inacessíveis a tantos. O que me falta é também a tolerância para aceitar que podemos gastar o dinheiro que qualquer pessoa que trabalhe de verdade, nesse país, sua tanto para ganhar, enfim, uma quantia que compraria tanta comida e com a qual famílias sobrevivem durante o mês inteiro, em um simples calçado.
É quando vejo algo assim, então, que paro um pouco para tentar solidificar ainda mais a minha convicção de que tudo isso é um absurdo, de modo que, se algum dia eu chegar realmente a ser ainda mais parte dessa minoria capaz de consumir, eu lembre de quão estúpido é esse modo de vida em que ficamos submersos, às vezes.
Não me refiro aqui àquelas excentricidades de milhares de dólares que os muito ricos compram em lojas luxuosas para exibir-se. A questão, na verdade, são aqueles estabelecimentos que atendem à classe média, abarrotados de produtos caríssimos cujo único mérito é possuir um nome conhecido, e que graças a isso conquistaram entre a população o status de qualidade e diferenciação.
Como alguém pode ser capaz, por exemplo, de pagar R$ 250,00 ou R$ 300,00 em um simples tênis, que não serve para mais nada senão calçar os pés e contribuir para o bem estar físico e a estética de um indivíduo? Antes, ainda: como chegamos a esse ponto em que empresas são capazes de elevar de forma absurda seus preços, apenas por contarem com uma poderosa grife, e fazem isso com a ampla compreensão e aceitação das pessoas, que não enxergam absurdo algum nessa situação que, analisada mais atentamente, revela-se um verdadeiro contra-senso?
Talvez eu devesse ser um dos mais aptos a responder a essa questão, dada a minha formação acadêmica, mas a verdade é que, além de qualquer explicação mercadológica de necessidades de consumo, técnicas de diferenciação de produtos, fortalecimento da marca, etc, o que me falta é o entendimento de como chegamos a tal nível de sacrifício, em que meros objetos são valorados de forma irreal, criando padrões de consumo insustentáveis em longo prazo para todos e, desde já, inacessíveis a tantos. O que me falta é também a tolerância para aceitar que podemos gastar o dinheiro que qualquer pessoa que trabalhe de verdade, nesse país, sua tanto para ganhar, enfim, uma quantia que compraria tanta comida e com a qual famílias sobrevivem durante o mês inteiro, em um simples calçado.
É quando vejo algo assim, então, que paro um pouco para tentar solidificar ainda mais a minha convicção de que tudo isso é um absurdo, de modo que, se algum dia eu chegar realmente a ser ainda mais parte dessa minoria capaz de consumir, eu lembre de quão estúpido é esse modo de vida em que ficamos submersos, às vezes.
quarta-feira, outubro 13, 2004
Morreu o Fernando Sabino. Recebi a notícia um pouco atrasada, tão ausente do cotidiano que estive durante este fim-de-semana e feriado. No carro, ontem, de volta a Recife, recebi uma mensagem comunicando-me de sua morte. Primeiro susto. Cerca de uma hora depois, ainda na estrada, a lembrança: ontem seria o dia do seu aniversário! Segundo susto. O que significa morrer às vésperas do seu aniversário? Nada, talvez, mas o momento final de alguém sempre tão encantado pelos mistérios da vida, religioso que era e com uma fascinante interpretação metafísica do cotidiano, não poderia mesmo estar ausente de uma curiosa coincidência como essa.
Curioso também é notar que Sabino, que sempre demonstrava uma grande vontade de preservar a criança que havia dentro de si, nasceu no dia das crianças. Conforme afirmou em seu livro “O menino no espelho”:
"Quando eu era menino, os mais velhos perguntavam:
-Que é que você quer ser quando crescer?
Hoje não perguntam mais. Se perguntassem, eu diria que quero ser menino."
Este livro, então, representa esse desejo de ser criança, de preservar a pureza e a inocência infantis, de modo que, de tão simples e ingênuo que é, chega a ser simplório, valendo mais pelo seu simbolismo, ou seja, por representar da melhor forma possível essa vontade de ser criança eternamente, de não perder o humor, o otimismo, a simplicidade e a capacidade de encantar-se pelas coisas simples.
Não sou tão apaixonado pela obra de Sabino como a minha admiração pelo escritor pode sugerir. Ele, na verdade, foi criticado muitas vezes por ter optado por gêneros mais “simples e fáceis”, como as crônicas e os contos, em vez de dedicar-se a obras mais ousadas e profundas como foi O encontro marcado, seu livro mais conhecido. Esta é uma crítica com a qual de certa forma concordo. Posso dizer, no entanto, que para mim bastaria que este mineiro tivesse escrito unicamente este romance para que eu o admirasse e nutrisse por ele aquela gratidão meio abstrata que sentimos pelas pessoas que nos ajudam a crescer emocional, espiritual e intelectualmente.
A leitura de suas cartas (do livro Cartas na mesa – Aos três parceiros, meus amigos para sempre, em que ele publica sua correspondência com os três companheiros de toda a vida, Hélio Pellegrino, Paulo Mendes Campos e Otto Lara Resende) veio aumentar, posteriormente, esta admiração que cresceu ao longo do tempo.
Não colocarei aqui, hoje, nenhum trecho do livro O encontro marcado. Já o citei muitas vezes, e não seria novidade dizer que tudo o que está escrito no livro fala por mim, me representa, diz o que não consigo dizer e expressa não só boa parte do que era quando o li pela primeira vez, em 2001, mas também muito do que eu gostaria de ser, da visão de mundo que eu gostaria de preservar, do que ainda sou e do que me transformei desde então, e enfim, do que considero também como ideal e busco sempre, embora muitas vezes não alcance.
Vou terminar esse post, portanto, com uma idéia bem simples, expressa no livro O tabuleiro de damas. Segundo Fernando Sabino, “o tabuleiro não é nem branco com quadrados pretos, nem preto com quadrados brancos, mas de outra cor, com quadrados pretos e brancos”. A busca dessa outra cor, do que está escondido nos fatos, nas pessoas e nos acontecimentos e o encantamento com esse mistério da vida é que me fascinam. Também vejo tudo, inclusive a mim mesmo, como esse tabuleiro, que traz algo escondido e que está além da obviedade do que se vê, do que é explícito. Também busco reconhecer na vida esse mistério, essa cor de difícil percepção, e Fernando Sabino ajudou-me, como deve ter ajudado a muitos, não a encontra-la, mas pelo menos a reconhecer a sua existência e a importância de persistir nessa procura ousada.
Curioso também é notar que Sabino, que sempre demonstrava uma grande vontade de preservar a criança que havia dentro de si, nasceu no dia das crianças. Conforme afirmou em seu livro “O menino no espelho”:
"Quando eu era menino, os mais velhos perguntavam:
-Que é que você quer ser quando crescer?
Hoje não perguntam mais. Se perguntassem, eu diria que quero ser menino."
Este livro, então, representa esse desejo de ser criança, de preservar a pureza e a inocência infantis, de modo que, de tão simples e ingênuo que é, chega a ser simplório, valendo mais pelo seu simbolismo, ou seja, por representar da melhor forma possível essa vontade de ser criança eternamente, de não perder o humor, o otimismo, a simplicidade e a capacidade de encantar-se pelas coisas simples.
Não sou tão apaixonado pela obra de Sabino como a minha admiração pelo escritor pode sugerir. Ele, na verdade, foi criticado muitas vezes por ter optado por gêneros mais “simples e fáceis”, como as crônicas e os contos, em vez de dedicar-se a obras mais ousadas e profundas como foi O encontro marcado, seu livro mais conhecido. Esta é uma crítica com a qual de certa forma concordo. Posso dizer, no entanto, que para mim bastaria que este mineiro tivesse escrito unicamente este romance para que eu o admirasse e nutrisse por ele aquela gratidão meio abstrata que sentimos pelas pessoas que nos ajudam a crescer emocional, espiritual e intelectualmente.
A leitura de suas cartas (do livro Cartas na mesa – Aos três parceiros, meus amigos para sempre, em que ele publica sua correspondência com os três companheiros de toda a vida, Hélio Pellegrino, Paulo Mendes Campos e Otto Lara Resende) veio aumentar, posteriormente, esta admiração que cresceu ao longo do tempo.
Não colocarei aqui, hoje, nenhum trecho do livro O encontro marcado. Já o citei muitas vezes, e não seria novidade dizer que tudo o que está escrito no livro fala por mim, me representa, diz o que não consigo dizer e expressa não só boa parte do que era quando o li pela primeira vez, em 2001, mas também muito do que eu gostaria de ser, da visão de mundo que eu gostaria de preservar, do que ainda sou e do que me transformei desde então, e enfim, do que considero também como ideal e busco sempre, embora muitas vezes não alcance.
Vou terminar esse post, portanto, com uma idéia bem simples, expressa no livro O tabuleiro de damas. Segundo Fernando Sabino, “o tabuleiro não é nem branco com quadrados pretos, nem preto com quadrados brancos, mas de outra cor, com quadrados pretos e brancos”. A busca dessa outra cor, do que está escondido nos fatos, nas pessoas e nos acontecimentos e o encantamento com esse mistério da vida é que me fascinam. Também vejo tudo, inclusive a mim mesmo, como esse tabuleiro, que traz algo escondido e que está além da obviedade do que se vê, do que é explícito. Também busco reconhecer na vida esse mistério, essa cor de difícil percepção, e Fernando Sabino ajudou-me, como deve ter ajudado a muitos, não a encontra-la, mas pelo menos a reconhecer a sua existência e a importância de persistir nessa procura ousada.
quinta-feira, outubro 07, 2004
Há algo de muito errado com o mundo... Não sei bem ainda o que é, mas que tem, tem...
...
Esqueci de comentar aqui, mas revi recentemente o filme Persona, de Ingmar Bergman (pela terceira vez). Achei que vendo uma vez mais o entenderia quase que totalmente, mas é incrível como, no fim, acabei foi “desentendendo” tudo que tinha entendido antes. Aquele filme é uma loucura, simplesmente, não dá pra tentar entender nada ao pé da letra.
Bom, mas porque lembrei dele agora? Enfim... Continuo gostando dele, mesmo que me pareça que Bergman e seu filme são um poço de pretensão, que as explorações psicológicas do roteiro de Persona são pra lá de herméticas e confusas e que eu nunca vou conseguir entender psicanálise a ponto de analisar o conteúdo desse filme (é notória a influência da psicanálise nos filmes de Bergman, e isso não sou quem digo, e sim os grandes entendidos em cinema e na obra desse cineasta).
Acho, no entanto, que a força de certas imagens e de certas idéias comunicadas por meio de uma película, de uma cena, não podem ser expressas em palavras, explicadas ou entendidas tão racionalmente. E é isso: as imagens de Persona às vezes representam tão bem certos sentimentos e certa visão de mundo, o que, como disse no post anterior em que escrevi sobre esse filme, acredito que é um dos objetivos da arte, afinal, que não consigo deixar de gostar desse filme.
Há algo, sim, de errado com o mundo. Tenho estudado História recentemente, e essa semana, em especial, li a respeito da Segunda Guerra Mundial, dos regimes totalitários e dos crimes políticos de Stálin. E acho que nada tem representado melhor a minha perplexidade diante desses grandes conflitos e dessa barbárie quanto a cena em que a atriz Elisabeth Vogler, perplexa, assustada, depara-se com a cena no noticiário de um manifestante ateando fogo ao próprio corpo, no meio da rua, em protesto. Nessa cena está representada toda a impotência de um indivíduo perante a violência, o desrespeito e a ganância, e também a impotência do próprio artista, que sente-se incapaz de transformar a sociedade, tem sua sensibilidade peculiar ferida pela dureza de interesses absurdos e percebe a dor das pessoas, a revolta, o desespero, mas nada pode fazer a respeito, simplesmente fica mudo, sem palavras.
Não foi, no entanto, essa história toda de Segunda Guerra Mundial, nazismo, fascismo e guerra que me fez escrever esse post. Esses fatos nós já conhecemos, e a desilusão por conhecê-los, de certo modo, já foi sofrida e um pouco assimilada. O que me faz realmente pensar em quanto erro, quanto desarranjo existe por aí é a falta de rumo que percebo em tantas pessoas, sem saber o que priorizar na vida, valorizando escolhas que não as suas, optando por valores que não os satisfazem, convenções que não põem ordem em absolutamente nada, só confundem ainda mais a todos, e elegendo como meta fundamental na vida o acúmulo, o poder, o engrandecimento social, que satisfaz mais aos outros que a si mesmo. Pessoas que não enxergam poesia nenhuma na vida, vivem por inércia e nem sequer percebem isso, pois acham que estão apenas sendo determinadas, fortes, decididas, quando na verdade estão sendo mecânicas, direcionadas, anestesiadas.
É dessa miopia individual que, em um contexto global, surgem as grandes tragédias humanas. É assim que acolhemos um pouquinho, dentro de cada um de nós, a semente dessa barbárie que, quando amplificada, parece tão insana e inexplicável. E talvez seja da tentativa de combater essa semente e da busca difícil de um sentido maior, que esteja acima deste engrandecimento insatisfatório, que surge a infelicidade. Porque quem está anestesiado não sente, nem percebe que é infeliz, e apenas quem tem a grande ambição de encontrar uma motivação mais verdadeira tem que lidar, todos os dias, com as conseqüências da sua frustrada busca.
...
Esqueci de comentar aqui, mas revi recentemente o filme Persona, de Ingmar Bergman (pela terceira vez). Achei que vendo uma vez mais o entenderia quase que totalmente, mas é incrível como, no fim, acabei foi “desentendendo” tudo que tinha entendido antes. Aquele filme é uma loucura, simplesmente, não dá pra tentar entender nada ao pé da letra.
Bom, mas porque lembrei dele agora? Enfim... Continuo gostando dele, mesmo que me pareça que Bergman e seu filme são um poço de pretensão, que as explorações psicológicas do roteiro de Persona são pra lá de herméticas e confusas e que eu nunca vou conseguir entender psicanálise a ponto de analisar o conteúdo desse filme (é notória a influência da psicanálise nos filmes de Bergman, e isso não sou quem digo, e sim os grandes entendidos em cinema e na obra desse cineasta).
Acho, no entanto, que a força de certas imagens e de certas idéias comunicadas por meio de uma película, de uma cena, não podem ser expressas em palavras, explicadas ou entendidas tão racionalmente. E é isso: as imagens de Persona às vezes representam tão bem certos sentimentos e certa visão de mundo, o que, como disse no post anterior em que escrevi sobre esse filme, acredito que é um dos objetivos da arte, afinal, que não consigo deixar de gostar desse filme.
Há algo, sim, de errado com o mundo. Tenho estudado História recentemente, e essa semana, em especial, li a respeito da Segunda Guerra Mundial, dos regimes totalitários e dos crimes políticos de Stálin. E acho que nada tem representado melhor a minha perplexidade diante desses grandes conflitos e dessa barbárie quanto a cena em que a atriz Elisabeth Vogler, perplexa, assustada, depara-se com a cena no noticiário de um manifestante ateando fogo ao próprio corpo, no meio da rua, em protesto. Nessa cena está representada toda a impotência de um indivíduo perante a violência, o desrespeito e a ganância, e também a impotência do próprio artista, que sente-se incapaz de transformar a sociedade, tem sua sensibilidade peculiar ferida pela dureza de interesses absurdos e percebe a dor das pessoas, a revolta, o desespero, mas nada pode fazer a respeito, simplesmente fica mudo, sem palavras.
Não foi, no entanto, essa história toda de Segunda Guerra Mundial, nazismo, fascismo e guerra que me fez escrever esse post. Esses fatos nós já conhecemos, e a desilusão por conhecê-los, de certo modo, já foi sofrida e um pouco assimilada. O que me faz realmente pensar em quanto erro, quanto desarranjo existe por aí é a falta de rumo que percebo em tantas pessoas, sem saber o que priorizar na vida, valorizando escolhas que não as suas, optando por valores que não os satisfazem, convenções que não põem ordem em absolutamente nada, só confundem ainda mais a todos, e elegendo como meta fundamental na vida o acúmulo, o poder, o engrandecimento social, que satisfaz mais aos outros que a si mesmo. Pessoas que não enxergam poesia nenhuma na vida, vivem por inércia e nem sequer percebem isso, pois acham que estão apenas sendo determinadas, fortes, decididas, quando na verdade estão sendo mecânicas, direcionadas, anestesiadas.
É dessa miopia individual que, em um contexto global, surgem as grandes tragédias humanas. É assim que acolhemos um pouquinho, dentro de cada um de nós, a semente dessa barbárie que, quando amplificada, parece tão insana e inexplicável. E talvez seja da tentativa de combater essa semente e da busca difícil de um sentido maior, que esteja acima deste engrandecimento insatisfatório, que surge a infelicidade. Porque quem está anestesiado não sente, nem percebe que é infeliz, e apenas quem tem a grande ambição de encontrar uma motivação mais verdadeira tem que lidar, todos os dias, com as conseqüências da sua frustrada busca.
quarta-feira, outubro 06, 2004
terça-feira, outubro 05, 2004
Ao tentar escrever o post anterior lembrei, imediatamente, de uma crônica de Clarice Lispector que fala do pensamento como um jogo, uma forma de diversão ou distração, embora perigoso. Em um trecho, por exemplo, ela cita o hábito de enumerar sentimentos que carecem de um nome para serem expressos:
“Então comecei uma listinha de sentimentos dos quais não sei o nome. Se recebo um presente dado com carinho por pessoa de quem não gosto – como se chama o que sinto? A saudade que se tem de pessoa de quem a gente não gosta mais, essa mágoa e esse rancor – como se chama? Estar ocupada - e de repente parar por ter sido tomada por uma súbita desocupação desanuviadora e beata, como se uma luz de milagre tivesse entrado na sala: como se chama o que se sentiu?”
Digo que me lembrei desta crônica porque foi assim que me percebi ao tentar escrever este último texto que postei: como se estivesse diante de um destes sentimentos sem nome, de idéias que não poderia explicitar. Talvez por isso a sucessão de períodos intermináveis, a desarticulação de idéias, o resultado um pouco vago e a certeza de que, em alguns pontos, não falei bem o que queria. Pensei ainda em “guarda-lo até amanhã”, para relê-lo com olhos de leitor e ver se ele não estaria ininteligível. Mas decidi no entanto posta-lo aqui, logo, pra me livrar de algo que desde algumas semanas atrás considerei importante expressar.
É possível que tenha existido algum sentimento ruim que motivou este meu texto, mas, se houve, não foi aquele tipo de piedade humilhante ou de compaixão fundamentada na pretensão da superioridade, e sim a inveja por uma força e uma humildade que não tenho e a decepção pela insensibilidade de tantos, como no momento descrito pude constatar. Além disso, houve a tristeza, também, pela própria irresponsabilidade que me faz consumir inadvertidamente, acho, os frutos deste tipo de trabalho árduo e dessa busca diária da sobrevivência. De resto, nada de distanciamento. Como disse, para mim tratam-se de realidades indistintas.
...
Esta crônica que mencionei está no livro “A descoberta do mundo”, de Clarice, que reúne (em ordem cronológica) as contribuições semanais da escritora ao Jornal do Brasil, no período de agosto de 1967 a dezembro de 1973. O livro traz, portanto, uma grande quantidade de textos (mesmo!, são quase 500 páginas) em forma de crônicas, pensamentos, comentários, reflexões, pequenos contos... É engraçado pensar que, pela ordem cronológica, a periodicidade, a abordagem de acontecimentos pessoais e o comentário a respeito dos fatos da época, bem como a própria variedade de estilos, o teor e a leveza dos textos, é como se estivéssemos diante de um... blog! hehehe Isso mesmo. Se Clarice estivesse viva hoje e resolvesse ter um, acho que seria mais ou menos isso que iria sair... :p
Acho que essa comparação com um blog dá uma boa idéia do teor dos textos, neste livro. Não há nada tão elaborado ou particularmente genial (pelo menos até agora) como podemos encontrar a cada página dos seus romances - o que é óbvio, em se tratando de textos para uma coluna de jornal, com prazos semanais de entrega e uma linguagem mais “fácil”.
O talento dessa escritora, no entanto, se revela a cada página, na subjetividade com que trata temas tão factuais e no surgimento de reflexões sensacionais a respeito de questões às vezes tão comuns. Um bom exemplo é a crônica de 1967 em que Clarice fala a respeito do primeiro cosmonauta a ir ao espaço:
“- Para vermos o azul, olhamos para o céu. A Terra é azul para quem a olha do céu. Azul será uma cor em si ou uma questão de distância? Ou uma questão de grande nostalgia? O inalcançável é sempre azul.
- Se eu fosse o primeiro astronauta, minha alegria só se renovaria quando um segundo homem voltasse lá do mundo: pois também ele vira. Porque “ter visto” não é substituível por nenhuma descrição: ter visto só se compara a ter visto. Até um outro ser humano ter visto também, eu teria dentro de mim um grande silêncio, mesmo que falasse. Consideração: suponho a hipótese de alguém no mundo já ter visto Deus. E nunca ter dito uma palavra. Pois, se nenhum outro viu, é inútil dizer.”
“Então comecei uma listinha de sentimentos dos quais não sei o nome. Se recebo um presente dado com carinho por pessoa de quem não gosto – como se chama o que sinto? A saudade que se tem de pessoa de quem a gente não gosta mais, essa mágoa e esse rancor – como se chama? Estar ocupada - e de repente parar por ter sido tomada por uma súbita desocupação desanuviadora e beata, como se uma luz de milagre tivesse entrado na sala: como se chama o que se sentiu?”
Digo que me lembrei desta crônica porque foi assim que me percebi ao tentar escrever este último texto que postei: como se estivesse diante de um destes sentimentos sem nome, de idéias que não poderia explicitar. Talvez por isso a sucessão de períodos intermináveis, a desarticulação de idéias, o resultado um pouco vago e a certeza de que, em alguns pontos, não falei bem o que queria. Pensei ainda em “guarda-lo até amanhã”, para relê-lo com olhos de leitor e ver se ele não estaria ininteligível. Mas decidi no entanto posta-lo aqui, logo, pra me livrar de algo que desde algumas semanas atrás considerei importante expressar.
É possível que tenha existido algum sentimento ruim que motivou este meu texto, mas, se houve, não foi aquele tipo de piedade humilhante ou de compaixão fundamentada na pretensão da superioridade, e sim a inveja por uma força e uma humildade que não tenho e a decepção pela insensibilidade de tantos, como no momento descrito pude constatar. Além disso, houve a tristeza, também, pela própria irresponsabilidade que me faz consumir inadvertidamente, acho, os frutos deste tipo de trabalho árduo e dessa busca diária da sobrevivência. De resto, nada de distanciamento. Como disse, para mim tratam-se de realidades indistintas.
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Esta crônica que mencionei está no livro “A descoberta do mundo”, de Clarice, que reúne (em ordem cronológica) as contribuições semanais da escritora ao Jornal do Brasil, no período de agosto de 1967 a dezembro de 1973. O livro traz, portanto, uma grande quantidade de textos (mesmo!, são quase 500 páginas) em forma de crônicas, pensamentos, comentários, reflexões, pequenos contos... É engraçado pensar que, pela ordem cronológica, a periodicidade, a abordagem de acontecimentos pessoais e o comentário a respeito dos fatos da época, bem como a própria variedade de estilos, o teor e a leveza dos textos, é como se estivéssemos diante de um... blog! hehehe Isso mesmo. Se Clarice estivesse viva hoje e resolvesse ter um, acho que seria mais ou menos isso que iria sair... :p
Acho que essa comparação com um blog dá uma boa idéia do teor dos textos, neste livro. Não há nada tão elaborado ou particularmente genial (pelo menos até agora) como podemos encontrar a cada página dos seus romances - o que é óbvio, em se tratando de textos para uma coluna de jornal, com prazos semanais de entrega e uma linguagem mais “fácil”.
O talento dessa escritora, no entanto, se revela a cada página, na subjetividade com que trata temas tão factuais e no surgimento de reflexões sensacionais a respeito de questões às vezes tão comuns. Um bom exemplo é a crônica de 1967 em que Clarice fala a respeito do primeiro cosmonauta a ir ao espaço:
“- Para vermos o azul, olhamos para o céu. A Terra é azul para quem a olha do céu. Azul será uma cor em si ou uma questão de distância? Ou uma questão de grande nostalgia? O inalcançável é sempre azul.
- Se eu fosse o primeiro astronauta, minha alegria só se renovaria quando um segundo homem voltasse lá do mundo: pois também ele vira. Porque “ter visto” não é substituível por nenhuma descrição: ter visto só se compara a ter visto. Até um outro ser humano ter visto também, eu teria dentro de mim um grande silêncio, mesmo que falasse. Consideração: suponho a hipótese de alguém no mundo já ter visto Deus. E nunca ter dito uma palavra. Pois, se nenhum outro viu, é inútil dizer.”
sexta-feira, outubro 01, 2004
Nessa existência um pouco irritada de apatia e melancolia cotidianas, nem sempre enxergo com sensibilidade os sutis caminhos da identificação solidária e cúmplice, tampouco da comoção que tal sentimento de aproximação a realidades indistintas proporciona.
Se há algo, no entanto, capaz de mascarar qualquer vulgaridade e mesquinhez possivelmente atribuídas ao ser humano, às vezes tão único e avulso em sua solitária luta e penar cotidianos, e emocionar-me, é aquele esforço quase sobre-humano de árduo trabalho, sobrevivência e construção de uma dignidade inalienável.
Assim, encontro-me ainda um pouco comovido, sempre, ao relembrar uma expressão timidamente humilde, não obstante de uma mulher forte, trabalhando com afinco pela construção de uma possibilidade que o tão elogiado senso coletivo não lhe proporcionou. Envergonhada, sem saber bem de quê, calada pelo receio de falar, pela suposta falta de modos, pela inadequação àquele tipo de exposição, àquela situação em que se encontrava, tão perdida, tão rodeada de rostos bem cuidados e personalidades impenetráveis, irredutíveis em sua certeza petulante de suposta superioridade, enfim, mal cabendo em si de tão deslocada, numa sensação de incômoda timidez, simplesmente trabalhava.
Vendia pequenos lanches, a preços módicos e com muita dificuldade, superando preconceitos advindos de mentalidades grandiosas. Eram apenas lanches, algo para matar a fome, algo barato, simples, desprovido de sofisticação e arrogância produtiva. Lanches, apenas, feitos com capricho, imagino, e cuja comercialização renderia uma modesta renda, talvez... Para sua família? Para si, somente? Apenas suponho.
E ela que era toda inadequação, as palavras engasgando, ditas de forma titubeante ainda que orgulhosa... Sim, orgulho!, do tipo que só a sua dignidade poderia proporcionar. Dignidade conquistada com honestidade, trabalho, esperança - e força, sobretudo. Arrisco-me, sim, a falar em sua honestidade, embora não a conheça, mas acredito ainda na existência dessa honestidade que floresce da humildade, da solidariedade e do amor familiar, da força encontrada nessa paixão pela sobrevivência, pela vitória diária do ganho, dos frutos do esforço e da perseverança popular.
Vendeu apenas um lanche, naquele dia, para aquelas tantas pessoas. O que sobrou estragaria? Seria uma perda, um prejuízo para alguém já tão sem recursos? As respostas não tive, nem preciso, porque sei que a luta continuaria a cada hora seguinte, sua decepção pela impossibilidade de interação permaneceria velada e sua força seria maior, bem maior que a minha, certamente, que ainda sirvo-me apenas do fruto de outros trabalhos, de um suor que não é o meu.
Não era mesmo para aquelas pessoas, aquele lanche. Eles todos tão bons, tão cheios de posse, não haveriam mesmo de comer ali, em pé, no calor, um simples lanche barato. Mas eu fiquei ainda, sempre, com a lembrança silenciosa do fruto daquele e de outros trabalhos e do suor de pessoas tão próximas, fruto e suor estes consumidos às vezes aos tropeços, à revelia e impensadamente - desatino de uma insensibilidade injustificável.
Eu também estive lá, em pé, no calor, mas sem comer, igualmente. Fome eu já não tinha, mesmo.
Se há algo, no entanto, capaz de mascarar qualquer vulgaridade e mesquinhez possivelmente atribuídas ao ser humano, às vezes tão único e avulso em sua solitária luta e penar cotidianos, e emocionar-me, é aquele esforço quase sobre-humano de árduo trabalho, sobrevivência e construção de uma dignidade inalienável.
Assim, encontro-me ainda um pouco comovido, sempre, ao relembrar uma expressão timidamente humilde, não obstante de uma mulher forte, trabalhando com afinco pela construção de uma possibilidade que o tão elogiado senso coletivo não lhe proporcionou. Envergonhada, sem saber bem de quê, calada pelo receio de falar, pela suposta falta de modos, pela inadequação àquele tipo de exposição, àquela situação em que se encontrava, tão perdida, tão rodeada de rostos bem cuidados e personalidades impenetráveis, irredutíveis em sua certeza petulante de suposta superioridade, enfim, mal cabendo em si de tão deslocada, numa sensação de incômoda timidez, simplesmente trabalhava.
Vendia pequenos lanches, a preços módicos e com muita dificuldade, superando preconceitos advindos de mentalidades grandiosas. Eram apenas lanches, algo para matar a fome, algo barato, simples, desprovido de sofisticação e arrogância produtiva. Lanches, apenas, feitos com capricho, imagino, e cuja comercialização renderia uma modesta renda, talvez... Para sua família? Para si, somente? Apenas suponho.
E ela que era toda inadequação, as palavras engasgando, ditas de forma titubeante ainda que orgulhosa... Sim, orgulho!, do tipo que só a sua dignidade poderia proporcionar. Dignidade conquistada com honestidade, trabalho, esperança - e força, sobretudo. Arrisco-me, sim, a falar em sua honestidade, embora não a conheça, mas acredito ainda na existência dessa honestidade que floresce da humildade, da solidariedade e do amor familiar, da força encontrada nessa paixão pela sobrevivência, pela vitória diária do ganho, dos frutos do esforço e da perseverança popular.
Vendeu apenas um lanche, naquele dia, para aquelas tantas pessoas. O que sobrou estragaria? Seria uma perda, um prejuízo para alguém já tão sem recursos? As respostas não tive, nem preciso, porque sei que a luta continuaria a cada hora seguinte, sua decepção pela impossibilidade de interação permaneceria velada e sua força seria maior, bem maior que a minha, certamente, que ainda sirvo-me apenas do fruto de outros trabalhos, de um suor que não é o meu.
Não era mesmo para aquelas pessoas, aquele lanche. Eles todos tão bons, tão cheios de posse, não haveriam mesmo de comer ali, em pé, no calor, um simples lanche barato. Mas eu fiquei ainda, sempre, com a lembrança silenciosa do fruto daquele e de outros trabalhos e do suor de pessoas tão próximas, fruto e suor estes consumidos às vezes aos tropeços, à revelia e impensadamente - desatino de uma insensibilidade injustificável.
Eu também estive lá, em pé, no calor, mas sem comer, igualmente. Fome eu já não tinha, mesmo.
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