segunda-feira, agosto 23, 2004




Dia desses assisti novamente ao filme Persona, de Ingmar Bergman. É incrível como a cada vez que o vejo percebo novos detalhes, novas possibilidades de interpretação, e aos poucos vão ficando mais claras na minha mente as influências das suas imagens na minha forma de ver o cinema e até mesmo a própria realidade (afinal, acho que é nisso que a arte consiste, essencialmente – uma forma peculiar de perceber a realidade e traduzi-la em uma linguagem estética).
Persona não é entretenimento... É um filme difícil, por vezes cansativo, e com um enredo mínimo, e por isso mesmo ele é tão importante, pois explora a linguagem do cinema em sua plenitude, utilizando não apenas seus diálogos, mas principalmente suas imagens, sons, fotografia e edição para analisar o processo de construção, desconstrução, troca e fusão de personalidades, bem como o uso de máscaras sociais, o cinema e o teatro como representação da realidade e a relação de “vampirismo” estabelecida por essas formas de arte, na medida em que os atores buscam na realidade e nas outras pessoas elementos para construírem suas personagens... Daí a referência à persona, que tanto pode ser a máscara utilizada no teatro grego, como a própria máscara social que as pessoas criam para si.
Pelo fato de utilizar esta linguagem predominantemente visual, esta obra desmistifica a necessidade de uma explicação racional e contextualizada de cada imagem em um filme. Utilizando a estética para comunicar emoção, percepções subjetivas ou as próprias idéias e questionamentos que o motivaram, Bergman suplanta a necessidade de uma história coesa, de um enredo em sua concepção tradicional. O resultado é uma experiência quase onírica, em que a idéia de sonho é sempre quebrada, no entanto, pela noção de que estamos assistindo a um filme, a uma representação. E é, na verdade, justamente essa persistência do diretor em tornar evidente que aquilo a que estamos vendo trata-se apenas de um filme que torna esta obra tão peculiar e que gerou em mim tanto entusiasmo.
Explica-se: um ou dois meses depois de ver Persona pela primeira vez (e ainda com o filme na cabeça, perplexo), comecei coincidentemente a ler Argumentação contra a morte da arte, de Ferreira Gullar, livro indicado por uma amiga e que defendia a idéia de que a sucessão de vanguardas e a necessidade por inovações artísticas levaram à destruição da linguagem estética. Pois bem, tal livro despertou-me bastante entusiasmo e um dia, especificamente, li sobre o momento da história da arte em que os artistas sentiram necessidade de acabar com a reprodução perfeita da realidade e evidenciar a forma de representação, seja de modo sutil, utilizando novos materiais, deixando visível uma pincelada ou partes do quadro incompleto, ou até mesmo expondo telas em branco, rasgadas, perfuradas, para evidencia-las como instrumento da representação buscada pelo artista. Em todos os casos, o foco do livro na discussão a respeito desse momento da arte estava voltado às artes plásticas, mas foi a partir daí, no entanto, que percebi que era exatamente isso, também, que Bergman havia buscado em Persona: criar um filme metalingüístico, não no sentido de abordar o cinema e a produção de filmes em seu enredo, mas sim de gerar a reflexão a respeito dessa forma de arte por meio da própria construção do filme e de suas imagens, quebrando a ilusão, o “mundo fantástico da sétima arte”, para mostrar que o cinema consiste, acima de tudo, em uma representação, uma forma de linguagem, de exposição de idéias e de acepção da realidade. Assim como os pintores que pretenderam questionar a função de seus quadros rasgando suas telas e transformando-as na própria obra, ao invés da utilização da habitual representação pictórica, Bergman também utiliza-se de um efeito visual para literalmente rasgar a película do filme em um dos momentos-chave de sua obra (criando uma das cenas mais impressionantes já vistas no cinema). Somam-se a esse artifício a seqüência inicial que mostra diversas cenas de diferentes linguagens cinematográficas (cinema mudo e desenho animado, por exemplo), ou a própria cena que antecede essa seqüência e abre o filme, mostrando um projetor e a película que começa a ser projetada, assim como a cena próxima ao final em que é mostrado o cineasta com sua câmera. Em todos esses momentos, Bergman estimula a reflexão sobre o cinema, o teatro, a expressão artística, sua impotência diante das atrocidades humanas e o seu papel como instrumento para a compreensão do ser humano, da realidade.
O filme, claro, permite inúmeras interpretações. Ele pode ser visto também, por exemplo, pela vertente religiosa, abordando a questão do pecado e do sacrifício humano, ou como uma reflexão sobre os problemas da maternidade, ou ainda como uma análise das relações sociais, da inveja, do ressentimento... O melhor, no entanto, é deixar-se envolver pelo clima onírico da história, por suas imagens hipnóticas (algumas extremamente sombrias) e desfrutar de uma ousada experiência da sétima arte.

...

P.S. Bom, não quero parecer um intelectualóide, daqueles que acham que uma obra precisa ser complicada ou até mesmo ininteligível para que reflita a capacidade do seu autor ou a sua importância artística. E não quero com isso parecer inteligente também, muito pelo contrário: não dá para contar aqui mas garanto que é cômica a história da primeira vez em que vi esse filme. Adoraria ser outra pessoa, naquele momento, só para ver minha cara de perplexidade, em frente à tela... :P De qualquer forma, é muito bom (embora seja também, infelizmente, muito raro) encontrar um filme que nos desafie tanto, intelectual e emocionalmente, mesmo que à custa de um pequeno golpe em nossa auto-estima.

4 comentários:

Patricia Leal disse...

Fábio, depois desse teu post eu fiquei curiosíssima pra ver essa "Persona"!! Ele é difícil de encontrar nas locadoras ou tem como achar fácil?! =P
Ahh, outra coisa, ainda vou querer saber da tal história cômica de quando vc assistiu ao filme pela primeira vez =D hauhauaa

bjão! :)

fabio disse...

Patsy, legal que vc ficou interessada em ver o filme... Mas ó, espero não ter criado muita expectativa pq, digo logo, eu sou muito exagerado, viu? hehehehhehhe. E às vezes viajo demais vendo filme... mas acho q vale a pena mesmo, por isso resolvi falar sobre ele. :p Ah, é meio dificil de achar, so sei da classic video, aqui na torre, que tem... e a fita eh pessima. mas ca pra nós... soube que guga ta baixando na net. pede a ele... hauhauahauah. bjo.

Patricia Leal disse...

gustavo, gustavo...assuma que você queria ver filme pornô japonês!! =P hauhauhauahu

Ô rapaz, eu já tava tão feliz, jurando que ia me auto-convidar pra assistir "Persona" na casa de gugs :P espero que dessa vez dê certo :D

fabio disse...

hauhauhauhauahua... po, q sacanagem, hein, guga? tenta de novo, vai que agora dá certo..mas ve se nao acha um filme porno russo, dessa vez... :p