domingo, outubro 02, 2005



“Sim, a imagem é felicidade, mas junto dela está o vazio, e toda a força da imagem só pode se expressar através dela.”

“Tentem ver alguma coisa. Tentem imaginar alguma coisa. No primeiro caso dizemos: ‘olhe’. E no segundo: ‘feche os olhos’.”

“Dizem que os fatos falam por si, e Céline dizia: ‘infelizmente, não por muito tempo’. Já dizia isso em 1936... Porque o campo do texto já havia coberto o campo da visão.”

“Em 1938, Heisenberg e Bohr passeiam pelo interior da Dinamarca. Eles passam diante do castelo de Elsinore. O sábio alemão diz: ‘esse castelo não tem nada de extraordinário’. O físico dinamarquês responde: ‘sim, mas basta dizer – o castelo de Hamlet – e ele se torna extraordinário’. Elsinore: o real. Hamlet: o imaginário. Campo e contracampo. Imaginário: certeza. Real: incerteza.”

“O princípio do cinema: ir até a luz e aponta-la para a nossa noite. Nossa música.”

Godard, ele mesmo em uma reflexão sobre o olhar, em uma passagem do filme Nossa Música



Esta passagem é uma daquelas que fazem toda a diferença na história do cinema. Música, silêncio, imagens, escuridão, palavras convertidas por uma intérprete, ruídos de quem assiste à conferência: Godard orquestra tudo no momento talvez mais importante do seu novo filme, em que subverte os limites desta arte, misturando ficção e documentário, registro político, exposição de idéias e narrativa tênue para mostrar-se, mais uma vez, um cineasta que, acima de tudo, pensa sua arte e continua obstinado em atribuir-lhe um sentido político, contestatório e reflexivo. Só por trazer intrínseco, em seus filmes, este objetivo, eu já tenho o maior respeito pela sua obra. Não é fácil: Godard é um dos cineastas mais atacados da história do cinema, rejeitado como chato e insuportável pelos que buscam nos filmes unicamente diversão e histórias fáceis, mas igualmente detratado pelos mais críticos, que vêem em Godard uma espécie de símbolo da pretensão e da pseudo-intelectualidade. De fato, seu nome é dos mais banalizados neste meio - citado exaustivamente por pessoas metidas a cult e intelectualóides, ridicularizado por quem ri das pretensões estéticas e políticas tão essenciais ao trabalho de um cineasta.
Há ainda outro aspecto que gosto muito no conceito que move os filmes de Godard: ao contrário da maioria dos intelectuais, dos nomes influentes nos mais diversos campos da cultura, que adotaram o tom irreverente e debochado, a autoironia, a negação absoluta e o politicamente incorreto como elementos predominantes em suas idéias e sinônimos de senso crítico, Godard ainda defende uma ideologia e, sem nunca ser simplista ou vazio, não tem medo de defende-la obstinadamente e assumir um tom por vezes quase panfletário. Gosto inclusive dos seus excessos, com os quais demonstra ter pelas idéias que defende uma paixão, infelizmente, cada vez mais rara nesses tempos de “pós-modernidade”.
Neste novo filme, crítica feroz a todas as formas de guerra, Godard pensa Sarajevo, os conflitos entre os povos israelense e palestino, Kosovo e, de modo geral, todas as formas de violência, tendo como foco de interesse a questão da imagem, de como estes fatos são processados e absorvidos, dada a multiplicidade de interesses e concepções políticas que permeiam o seu registro. Mais: ele pensa a guerra no âmbito individual, onde predomina a perplexidade; seus efeitos nas nações e na identidade dos povos; a relação entre vencedores e vencidos e o interesse histórico que geralmente dá voz a apenas um dos lados; a auto-destruição e a violência como fraquezas humanas; e por fim, a necessidade de redenção. O filme divide-se em três partes, Inferno, Purgatório e Paraíso, e algumas de suas passagens são de uma contundência perturbadora, sem, no entanto, recorrerem à agressividade e à banalização. Afinal, este é também um dos objetivos primordiais de Godard com sua obra: ele ataca a banalização e a manipulação da imagem como formas políticas de anestesiar, acostumar o olhar ao absurdo da violência e inibir a percepção crítica da realidade que massacra milhões, em nome de interesses injustificáveis. “Matar um homem para defender uma idéia não é defender uma idéia, é matar um homem”, dispara, logo no início.

Mais uma vez, acaba sobrando para os americanos: desde o início, em que faz uma colagem de cenas reais de guerra com imagens do cinema americano, em que o massacre dos povos indígenas é transformado por Hollywood em épicos de aventura, até a já mencionada cena da conferência, em que Godard mostra a fotografia de uma cidade em ruínas, pergunta se alguém sabe que fato a imagem retrata e, dentre respostas como Sarajevo, Stalingrado, Hiroshima, responde: Richmond, Virginia, 1865. Guerra Civil Americana. Denúncia da estupidez humana que esfacela sua própria nação. Ataque à agressividade e à ânsia de guerra ainda tão estimulada pelos líderes estadunidenses e que causa sua auto-destruição. Godard também não perde a oportunidade de mostrar a bandeira americana, em sua orquestração do Inferno, e arremata sua crítica ácida ao mostrar o Paraíso sendo guardado pela marinha americana.
A contundência do seu ataque, no entanto, não perde jamais a delicadeza, ao falar da culpa, da melancolia, da fragilidade da vida humana, da perplexidade e do modo como buscamos a redenção e, finalmente, a paz com a qual sonhamos.

“E a libertação?
E a vitória?
Este será meu martírio
Esta noite estarei no paraíso.”

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