Tem um momento que começa assim: uma música vai fazendo tum, tum, tum... Ela já começa alta, mas vai crescendo ainda mais, ocupando o espaço, e parece que todo mundo começa a se mover de acordo com seu ritmo, inclusive o ambiente, que vai se envolvendo em fumaça, como aromas e incensos transformando a atmosfera do lugar. O álcool vai embaçando os olhos, líquidos sorvidos em goles generosos, e vez por outra um trago daquelas cigarrilhas que deixam um gostinho bom nos lábios. As bocas começam a proferir palavras que já têm cadência própria, e são palavras muitíssimas, desbragadas, sem sentido, apaixonadas e lançadas com ímpeto, sendo que múltiplas, vindas de todas as direções e formando um diálogo único, indiscutivelmente coeso e harmônico em sua completa falta de sentido. A música fica mais forte e, numa mudança súbita, sacode a todos, que numa sincronia quase ensaiada assumem o novo ritmo, alguns levantando das cadeiras na hora do tcharan-ran-tchum e já pegando seus parceiros, outros dançando sentados, imóveis, contemplativos, envoltos na espessa atmosfera carregada de ebriedade e cheiros quentes.
De repente não faz mais diferença fechar os olhos e tê-los abertos; todos estão verdadeiramente presentes, e se fecham os olhos o fazem apenas para desenhar melhor a cena, e quando os abrem são capazes de vislumbrar novamente aquelas imagens como que histórias de sonhos, quando tudo tem névoa, mas somente na cabeça de quem lembra.
Os sons - outrora chamados barulhos - de risadas, copos tilintando, garrafas estilhaçadas, mesas e cadeiras arrastando-se e riscando o chão, já estão perfeitamente integrados à melodia, que por sua vez já está naquela hora em que as pessoas começam a fechar os olhos e balançar a cabeça com risinho besta na cara, sendo que dessa vez não é se amostrando não – elas estão sentindo a música de verdade! Nas vozes os psius, os êpas, os oxes e as risadas cheias de pra-quê-isso se intensificam, na exata medida em que frases completas viram interjeições, lamentos viram choros exagerados, vontades viram pouca vergonha e amizades viram brindes.
Tem uma luz que vem de não sei onde e colore um pouco mais a cena, deixando tudo meio alaranjado, meio perdido em tons e nuances de natural luminosidade. Aí há momento pra tudo: pra comida que chega cheirosa e acaba ligeiro, pra outra rodada de bebida, pra confissões, para o quase impossível silêncio, e tudo vem e passa, porque tem outro momento diferente logo em seguida. A única coisa que não passa é a quentura, que deixa testas gotejando, roupas grudando, olhos lacrimejantes. Os copos que suam mancham círculos nas mesas de madeira, testemunhas de noites boêmias, alcoviteiras de encontros, cúmplices de conversas e verdades.
A cena toda continua assim, bonita, intensa, durante um bom tempo, até que tudo vai se amenizando, ficando vazio, e nada está mais suspenso no ar, novamente. Todos vão se acomodando à nova hora, reorganizam-se, saem pingando de um em um, dois em dois, até que grupos inteiros se formam e dizem adeus, olham de novo para o tempo e lembram de esquecer que são só momentos assim que valem a pena na vida.
sábado, setembro 24, 2005
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