Eu devo ter perdido de vez a medida do que seja um blog (e do tamanho que um post deve ter). Mas enfim, só lê quem quer...
Este poema foi o que eu descobri em uma noite, numa rápida e despretensiosa leitura antes de dormir. E o que ele diz é tudo, e tão essencial, assustadoramente significativo e próximo, agora, que não tem como resumir. Tampouco poderia comentar: perderia a graça, banalizaria, seria excesso de exposição, redundância, porque está completo, claro, sinceramente exposto.
E sim, é forte...
Reconhecimento de Nêmesis
(Março de 1926)
Mão morena dele pousa
No meu braço... Estremeci.
Sou eu quando era guri,
Esse garoto feioso.
Eu era assim mesmo... Eu era
Olhos e cabelos só.
Tão vulgar que fazia dó.
Nenhuma fruta não viera
Madurando temporã.
Eu era menino mesmo,
Menino... Cabelos só,
Que à custa de muita escova
E de brilhantina,
Me ondulavam na cabeça
Que nem sapé na lagoa
Si vem brisando a manhã.
É gente que não compreendo
Os saudosos do passado
Nem os gratos... Relembrança
Porta muito raramente
Nos olhos dos ocupados.
Por isso enxergo sem gosto
A casa da minha infância,
Casão meio espandongado
Onde meu pai se acabou.
Só mesmo o que é bem de agora
Possui direito de lágrima,
Sofrer... pois sim, mas lutando
Pela replanta brotando,
Sofrer sim, mas porém nunca
Sofrer puxando memória
Pelo café que secou.
No entanto quando sucede
Mais braba a vileza humana
Arranhar na minha porta,
Não sei porque o curumim
Que eu já fui, surge e se bota
Assim rentinho de mim.
Será que é um anjo da guarda?...
Não sei não... Creio que não.
Ele faz que não me enxerga,
Que não me conhece... Mão
Morena sempre pousando
No meu ombro, aluada muito!
Até o menino inteirinho
É que nem cousa perdida
E não dá tento de si.
Possui a vida sem vida
Das sombras. É assombração.
Remexe por todo o quarto,
Não desloca nenhum traste,
Se vê bem que não faz parte
Do grupo dos meus amigos...
Volta-e-meia vem e pousa
No meu braço a mão morena...
É um silêncio atravessando
O corpo manso das cousas.
Eu também si o reconheço,
É só porque sofro agreste,
E embora grudando a vista
No livro, eu faça de conta
Que não reparo no tal,
Minha alma espia o menino
Enquanto a vista devora
Uma sopa de aletria
Feita de letras malucas.
Mas ele não vai-se embora,
E o vulto do curumim,
Sem piedade, me recorda
A minha presença em mim.
Só isso. E por causa disso
Não posso fugir de mim!
Não posso ser como os outros!
Riso não pega de enxerto,
Ser mau carece raiz...
E confessando que sofro,
Não sei si é pela coragem,
Mas tenho como uma aragem
E fico bem mais feliz.
Menino, tu me recordas
A minha presença em mim!
... A primeira vez que veio
Tive uma alegria enorme,
Gostei de ver que já era
Bem mais taludo e mais forte
Que em pequeno e que possuía
Uma alma aquecida pelo
Fogo humano do universo.
Segunda vez me irritou.
Fui covarde, fui perverso,
Peguei no tal, lhe ensinei
A indecente dança-do-ombro.
Não quis saber, foi-se embora.
E quando não o vi mais,
Sozinho, me arrependi.
A terceira vez é agora
E eu... não sei... não gosto dele
Mas não quero que o rapaz
Me deixe sozinho aqui.
Não danço mais dança-do-ombro!
Eu reconheço que sofro!
Ah! malvadeza brutaça
Dos indivíduos humanos,
Dos humanos desta praça!
Ah! Homens filhos-da-puta,
Gente bem ruim, bem odiando,
Homens bem homens, grandiosos
Na sua inveja acordada!
Grandiosos na força bruta,
Na estupidez develada!
Que heroísmo sem inocência,
O do sujeito esquecendo
Do remorso e da consciência!
Ôh! força reta, bem homem,
De ser talqualmente os mares,
E os movimentos do mundo!
Perversidades solares
Da magrém! ser matapau!
Sucuri, raio, minuano!
Forçura destes humanos,
Iguais na perversidade,
Iguais na imbecilidade,
Na calúnia, iguais no ciúme!...
Conscientemente implacáveis!
Imperiais no riso mau!...
Ota, cabra demográfico,
Jornaleiro do azedume,
Secreção de baço podre,
Alma em que a sífilis deu!
Burrice gorda, indiscreta,
Veneranda... Homo imbecilis,
Invejado pelo poeta...
Viva piolho de galinha!
Êh! homem, bosta de Deus!
Menino, sai! Eu te odeio,
Menino assombrado, feio,
Menino de mim, menino,
Menino trelento, que enches
Com teus silêncios puríssimos
A bulha dos meus desejos,
Que nem a calma da tarde
Vence a bulha da cidade...
Menino mau, que me impedes
De entrar também pro recheio
Das estatísticas... sai!
Menino vago, sem nome,
Que me embebes inteirinho
Nesta amargura visguenta
Pelos homens! Pelos homens!...
Puxa! rapazes, minha alma,
Comprida que não se acaba,
Está negra tal-e-qual
Fruta seca de goiaba!
Meus olhos tão gostadores
Nem têm mais gosto de olhar!
E pela primeira vez
O murmurejo natal
Desta vida está sem graça,
E eu só desejo uma calma
Que apagasse até meus ais!
Tudo amarga porque os homens
Me amargaram por demais!
Uma tristeza profunda,
Uma fadiga profunda,
E até, miseravelmente,
O projeto inconfessável
De parar...
Menino, sai!
Você é o estranho periódico
Que me separa do ritmo
Unânime desta vida...
E o que é pior, você relembra
Em mim o que geralmente
Se acaba ao primeiro sopro:
Você renova a presença
De mim em mim mesmo... E eu sofro.
É tarde. Vamos dormir.
Amanhã escrevo o artigo.
Respondo cartas, almoço,
Depois tomo o bonde e sigo
Para o trabalho... Depois...
Depois o mesmo... Depois,
Enquanto fora os malévolos
Se preocupam com ele,
Vorazes feito caprinos,
Nesta rua Lopes chaves
Terá um homem concertando
As cruzes do seu destino.
Mário de Andrade
segunda-feira, setembro 19, 2005
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Um comentário:
Eu não conhecia esse poema do Mário. Não dá pra comentar... só consigo dizer que a emoção aumenta a medida que os versos passam e perto do fim as lágrimas nos chegam.
Natha
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