No ambiente reservado ao estudo da biblioteca, em todos os dias se busca algo diferente. Há em tudo algo como um silêncio tenso, uma vontade de leitura, uma resistência pelo aprendizado e para mim, sobretudo, uma possibilidade de fuga. Eu que não havia descoberto que é possível se esconder em idéias, agora corro para o excesso de palavras para me afogar no abstrato dos livros. E olho curioso os tipos humanos que percorrem o espaço, as caras conhecidas, as criaturas exóticas, os encontros sempre proveitosos com amigos, o burburinho de vida acadêmica que parece alheia, embora também devesse ser minha. E mesmo estando já mais habituado a estudar por aqui, regularmente matriculado, é no anonimato de visitante que me acomodo melhor.
No meu pensamento disperso eu olho o movimento constante, virando o rosto de tempos em tempos e abandonando o raciocínio raso da leitura para contemplar passantes, observar os corredores ou misturar constrangimento e jogo na observação dos estranhos com seus livros e suas idiossincrasias enquanto lêem. Eles, os estranhos, de vez em quando sentem-se observados e me olham também, e me divirto imaginando meu semblante de psicopata fitando os outros com cara de desconfiança ou risinhos esquisitos no rosto, eu que não sei pensar sem expressões faciais me acompanhando. Assim eu lembro também de Demian e resolvo que qualquer dia vou brincar de ser persuasivo: escolher alguém, mentalizar alguma ação - ordenar por exemplo “coce a cabeça”, “coce a cabeça” - e esperar pra ver se ele - ou ela - coça, mesmo. (Depois conto se dá certo, se acontece como no estranho romance do sujeito que tem a marca de Caim na fronte).
Mas como ia dizendo, na biblioteca o estudo é a menor das minhas ocupações. Aqui a gente anda entre as estantes cheias de volumes e é quase um sonho porque se acredita que, na leitura, pode-se ser um pouco de tudo e viver muito escolhendo menos. Estudar psicologia, direito, medicina, álgebra linear ou teologia: neste universo o único ônus de nossos experimentos é o tempo tomado pelas leituras escolhidas. Aceitando esta sacra dedicação, podemos ser um pouco psicanalistas - ler Freud, Jung e interpretação dos sonhos - ou historiadores, críticos de arte, arquitetos... Rompendo essa barreira de fatalismo solidificada pela falta de tempo e pela preguiça, podemos planejar viver várias vidas à medida que nos apropriamos destes textos. A escolha aqui também se mostra inevitável, claro, e se faz a cada página lida ou descartada, mas tudo parece ao alcance, as várias possibilidades que ignoramos nos nossos caminhos estão impressas e bem ali – a irresistível sedução de tudo que se pode construir com imaginação e de tudo o que se pode esquecer da amargura de outras horas.
É esta sedução que me faz perder longos instantes andando entre os livros, enriquecendo bibliografias que nunca iniciarei, criando roteiros de leituras que nunca acontecerão, mas me embriagando com a infinidade de coisas que desconheço e que parecem as únicas capazes de me salvar – nem pessoas nem fatos, pois disto já desisti. Deslizando os dedos entre os volumes - “Posse, possessória e usucapião”, “La anatomía humana”, “Filosofia medieval”, “Compendio de la teoria general del Estado”, “Teoria psicanalítica das neuroses”, “Anthologie du catholicisme social en France”, “Introdução ao pensar” (e eu que nem sabia que precisava me iniciar, comecei tão cedo e desordenado, também já nasci pensando) - as mãos e os olhos vão percorrendo tudo e os planos de ler, apenas, já satisfazem. Eu que tenho preguiça até de viver histórias inventadas...
(a primeira parte foi postada em agosto do ano passado)
quinta-feira, março 09, 2006
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