segunda-feira, outubro 31, 2005

segunda-feira, outubro 24, 2005

A certa altura da noite, ouso imaginar que se pensou junto:

“Tem uma poesia acontecendo
em cada esquina,
em cada mesa suja.”

Creio que ouvi isso no ar: é verdade? Natha, tu falou isso aquele dia no bar, em Olinda (os dois primeiros versos)?
Ponho as aspas porque não sei quem disse: se Nathalia, se outra pessoa, se todos nós em conversa dispersa ou muda, ou se foi desses espíritos malassombrados em que não acredito, mas que há quem jure que andam em bares e locais malditos, rondando mesas, espreitando vidas largadas.

...


Aonde é que esses dias vão chegar? Onde o freio? Onde todos nós imunes ao que está subentendido mas que facilmente se percebe? Onde aquela história do “se não ajuda, pelo menos não atrapalha”? Onde a explicação para esse peso que tem o vazio do ordinário, habitual mas cheio de complexidade disfarçada?

Aqui, só o dilema da certeza.

Sou só eu ou essa aparente normalidade que a gente nunca sabe se é aparente mesmo só complica mais as coisas, dando margem à possibilidade da dúvida?

Nada acontece com tudo isso que vivemos e, no entanto, parece que é sempre o limite, e o próximo grau é o ponto de ebulição. Alguém mais está com a cabeça fervendo diante do que não é dito?

A insustentável leveza do ser. Ou: estamos todos lascados. :p

...

Lembrei-me do Fernando Sabino, em carta agoniada pro Hélio, daí fui lá ver. Era assim:

“Alguma coisa de novo se anuncia, eu vejo, eu sei, eu juro que alguma coisa de novo vai surgir para o mundo, porque senão o que temos de melhor a fazer é mesmo comer e dormir. Nem ao menos morrer será preciso.”
Cartas na mesa, sendo esta de 16/10/45

Eu sinto parecido, mas rearranjo as idéias: algo de novo acontece, mas talvez o melhor seja mesmo dormir, porque só a ameaça do que pode vir a ser já dá um arrepio na espinha. Já escrevi muitos textos apaixonados a respeito da vontade de mudar. Hoje não. Eu posso: hoje é pelo imutável - porque o que está para acontecer parece ser cada vez menos promissor, então hoje a paixão é pelo que se fantasia.

“Sabia que sua imediata obrigação era o sonho...”
Jorge Luís Borges, em um dos muros da Oficina de Brennand. E isso resume muito.

quarta-feira, outubro 12, 2005

A palavra é vertigem. Fui ver no dicionário. Aurélio: edição velha, amarelecida, faltava a capa e também algumas folhas. Por sorte, a que hoje procurei estava lá: Vertigem sf. 1. Estado mórbido em que a pessoa tem a impressão de que tudo lhe gira em torno; tonteira. 2. Desmaio. 3. Desvario. Teria algo a ver com egocentrismo? Delírios? Mal estar físico? Hummm... tem a ver. Mas não é suficiente.
Ruth Rocha: dicionário que desavergonhadamente pedi à minha tia, professora da rede pública (espero que ela tenha conseguido outro, depois): Vertigem sf. 1. Tontura; desmaio. 2. Desvario; tentação súbita. Tentação súbita? Opa, isso já é diferente. Mas a isso eu chamo de outras coisas.
Creio que foi Milan Kundera quem disse algo que pra mim foi a expressão definitiva do significado deste vocábulo, e que resumiu, consigo, todo um estado de espírito que, de outro modo, demandaria centenas de palavras para que se esboçasse uma explicação, ainda assim frustrada. Então, vamos lá. Google: o destino de todos nós, nesses tempos pós-anos-2000. Dentre duas centenas de páginas, uma que parece transcrever exatamente o que lembro ter lido, há uns cinco anos atrás: "...vertigem não é o medo de cair, é outra coisa. É o vazio lá embaixo que nos chama e nos atrai, é o desejo da queda do qual nos defendemos aterrorizados". Ainda: “é a voz do vazio embaixo de nós, é a atração pela queda, é a embriaguez causada pela nossa própria fraqueza".
Vertigem é o desejo de cair. Quando você está no alto, prestes a despencar, não é o temor que você sente: a isso chamamos medo. Tampouco o sentimento de quem não tem mais forças para se segurar: seria isso apenas fraqueza. Vertigem, pois, seria algo como aqueles minutos em que, suspenso no ar, você por um minuto sente o impulso de afrouxar os dedos, soltar o único apoio, o único suporte que te protege, e deixar-se precipitar, de olhos fechados, rumo à conseqüência certa da sua queda. Quando, desacreditado de suas forças, sucumbindo ao medo que o apavora, você sente o impulso, por um instante irresistível, de desistir; antecipa tragicamente a previsão de que a queda é inevitável, de que o esforço machuca mais, ou que – na mais lamentável conclusão –, ele não vale a pena.
É então que você se surpreende com o fio tênue que ainda te mantém suspenso, meio sem chão, mas ainda a salvo. É então que te causa espanto o pouco que te segura da queda, que te afasta o desejo. E você se pergunta se é força, esperança ou o comodismo e a inércia que te fazem continuar se segurando...

Every time I rise I see you falling
Can you find me space inside your bleeding heart
Every time I rise I see you falling
Can you find me space
Find me space

It's in your reach
Concentrate
It's in your reach
Concentrate

Passive agressive, Placebo

terça-feira, outubro 11, 2005

La plage

Ousar o pequeno, o esquecido. A ousadia dos pés descalços, das roupas puídas, da cabeça recostada ao vento. O querer dos tranqüilos, da beleza, da terra.
Ousar-se existência que não se trai, que não se agride pelo sintético, pelo artificial, concreto que a carne esfacela.
Suor e trabalho - desejar-se trabalho digno, descoberta fraterna de construir junto, de se pensar coletivo, comover-se porque humano.
Desprendimento de não ter, do não à superação irrefletida, do conhecimento medido, mastigado aos poucos. A graça de ver, e não apenas ver-se, cada nova hora construída no leve espaço que rodeia. E ser parte, integrar, em vez de apenas meio, meta.
Ouvir. Ouvir e ouvir-se. - Observa minha descoberta, que é a morte: vamos morrer. Temos um destino, e tanto medo... E tanta fascinação.
Há um mistério - um segredo, diria até... talvez... Pensa melhor nesse segredo: negar é só mais uma forma de incerteza...
Chamar de karma ou chamar de sorte – é só mais um jeito de celebrar o inexplicável. Mas deixa-me ser ouvido, que eu também escuto. Faço força, é difícil, mas aos poucos escuto: a rua cheia de lamentos, os rostos cheios de perguntas, as linhas cheias de harmonia, os vazios repletos de convite à calma.
Ver a linha da praia, a areia, o sal. Não há nada que explique, mas está tudo aí. Chamar de karma ou chamar de destino, criar nomes, entidades, desfiar mitos, elaborar códigos: nada é suficiente, mas muito pouco também é necessário para se perceber que não vale o desespero, a tirana necessidade de planos, a corrida para preservar o insustentável. Lamentar com sinceridade o que vai embora, mas lembrar o muito que já foi e ainda assim permanece no novo que se criou.
Aprender a descobrir em tudo algo próximo ao que há na praia, em que toda alegria vai subitamente atiçando um estado de espírito eufórico, sensual, urgente e ébrio que faz sentir que se está vivendo.
Ousar fazer o que conforta, que deixa no meio de um aconchego, como quando se encolhe debaixo de cobertas à espera do sono.
São anos de desaprendizado, muitos horrores a vencer. Mas sempre é tempo de fazer gentilezas e acreditar: pés descalços, roupas puídas e fragmentos de música nos lábios.

Para ouvir: Alpha Petulay

sábado, outubro 08, 2005

“... A conscientização não pode existir fora da ‘práxis’, ou melhor, sem o ato ação-reflexão. Esta unidade dialética constitui, de maneira permanente, o modo de ser ou de transformar o mundo que caracteriza os homens.
Por isso mesmo, conscientização é um compromisso histórico. É também consciência histórica: é inserção crítica na história, implica que os homens assumam o papel de sujeitos que fazem e refazem o mundo. Exige que os homens criem sua existência com o material que a vida lhes oferece...”

“Para mim o utópico não é o irrealizável; a utopia não é o idealismo, é a dialetização dos atos de denunciar e anunciar, o ato de denunciar a estrutura desumanizante e anunciar a estrutura humanizante. Por esta razão a utopia é também um compromisso histórico.”

Paulo Freire

segunda-feira, outubro 03, 2005

"(...) alguém baixou com suavidade minhas pálpebras, me levando, desprevenido, a consentir num sono ligeiro, eu que não sabia que o amor requer vigília(...)"
Raduan Nassar - Lavoura Arcaica.

domingo, outubro 02, 2005



“Sim, a imagem é felicidade, mas junto dela está o vazio, e toda a força da imagem só pode se expressar através dela.”

“Tentem ver alguma coisa. Tentem imaginar alguma coisa. No primeiro caso dizemos: ‘olhe’. E no segundo: ‘feche os olhos’.”

“Dizem que os fatos falam por si, e Céline dizia: ‘infelizmente, não por muito tempo’. Já dizia isso em 1936... Porque o campo do texto já havia coberto o campo da visão.”

“Em 1938, Heisenberg e Bohr passeiam pelo interior da Dinamarca. Eles passam diante do castelo de Elsinore. O sábio alemão diz: ‘esse castelo não tem nada de extraordinário’. O físico dinamarquês responde: ‘sim, mas basta dizer – o castelo de Hamlet – e ele se torna extraordinário’. Elsinore: o real. Hamlet: o imaginário. Campo e contracampo. Imaginário: certeza. Real: incerteza.”

“O princípio do cinema: ir até a luz e aponta-la para a nossa noite. Nossa música.”

Godard, ele mesmo em uma reflexão sobre o olhar, em uma passagem do filme Nossa Música



Esta passagem é uma daquelas que fazem toda a diferença na história do cinema. Música, silêncio, imagens, escuridão, palavras convertidas por uma intérprete, ruídos de quem assiste à conferência: Godard orquestra tudo no momento talvez mais importante do seu novo filme, em que subverte os limites desta arte, misturando ficção e documentário, registro político, exposição de idéias e narrativa tênue para mostrar-se, mais uma vez, um cineasta que, acima de tudo, pensa sua arte e continua obstinado em atribuir-lhe um sentido político, contestatório e reflexivo. Só por trazer intrínseco, em seus filmes, este objetivo, eu já tenho o maior respeito pela sua obra. Não é fácil: Godard é um dos cineastas mais atacados da história do cinema, rejeitado como chato e insuportável pelos que buscam nos filmes unicamente diversão e histórias fáceis, mas igualmente detratado pelos mais críticos, que vêem em Godard uma espécie de símbolo da pretensão e da pseudo-intelectualidade. De fato, seu nome é dos mais banalizados neste meio - citado exaustivamente por pessoas metidas a cult e intelectualóides, ridicularizado por quem ri das pretensões estéticas e políticas tão essenciais ao trabalho de um cineasta.
Há ainda outro aspecto que gosto muito no conceito que move os filmes de Godard: ao contrário da maioria dos intelectuais, dos nomes influentes nos mais diversos campos da cultura, que adotaram o tom irreverente e debochado, a autoironia, a negação absoluta e o politicamente incorreto como elementos predominantes em suas idéias e sinônimos de senso crítico, Godard ainda defende uma ideologia e, sem nunca ser simplista ou vazio, não tem medo de defende-la obstinadamente e assumir um tom por vezes quase panfletário. Gosto inclusive dos seus excessos, com os quais demonstra ter pelas idéias que defende uma paixão, infelizmente, cada vez mais rara nesses tempos de “pós-modernidade”.
Neste novo filme, crítica feroz a todas as formas de guerra, Godard pensa Sarajevo, os conflitos entre os povos israelense e palestino, Kosovo e, de modo geral, todas as formas de violência, tendo como foco de interesse a questão da imagem, de como estes fatos são processados e absorvidos, dada a multiplicidade de interesses e concepções políticas que permeiam o seu registro. Mais: ele pensa a guerra no âmbito individual, onde predomina a perplexidade; seus efeitos nas nações e na identidade dos povos; a relação entre vencedores e vencidos e o interesse histórico que geralmente dá voz a apenas um dos lados; a auto-destruição e a violência como fraquezas humanas; e por fim, a necessidade de redenção. O filme divide-se em três partes, Inferno, Purgatório e Paraíso, e algumas de suas passagens são de uma contundência perturbadora, sem, no entanto, recorrerem à agressividade e à banalização. Afinal, este é também um dos objetivos primordiais de Godard com sua obra: ele ataca a banalização e a manipulação da imagem como formas políticas de anestesiar, acostumar o olhar ao absurdo da violência e inibir a percepção crítica da realidade que massacra milhões, em nome de interesses injustificáveis. “Matar um homem para defender uma idéia não é defender uma idéia, é matar um homem”, dispara, logo no início.

Mais uma vez, acaba sobrando para os americanos: desde o início, em que faz uma colagem de cenas reais de guerra com imagens do cinema americano, em que o massacre dos povos indígenas é transformado por Hollywood em épicos de aventura, até a já mencionada cena da conferência, em que Godard mostra a fotografia de uma cidade em ruínas, pergunta se alguém sabe que fato a imagem retrata e, dentre respostas como Sarajevo, Stalingrado, Hiroshima, responde: Richmond, Virginia, 1865. Guerra Civil Americana. Denúncia da estupidez humana que esfacela sua própria nação. Ataque à agressividade e à ânsia de guerra ainda tão estimulada pelos líderes estadunidenses e que causa sua auto-destruição. Godard também não perde a oportunidade de mostrar a bandeira americana, em sua orquestração do Inferno, e arremata sua crítica ácida ao mostrar o Paraíso sendo guardado pela marinha americana.
A contundência do seu ataque, no entanto, não perde jamais a delicadeza, ao falar da culpa, da melancolia, da fragilidade da vida humana, da perplexidade e do modo como buscamos a redenção e, finalmente, a paz com a qual sonhamos.

“E a libertação?
E a vitória?
Este será meu martírio
Esta noite estarei no paraíso.”