quarta-feira, janeiro 19, 2005

De minha silenciosa e inconsolável ambigüidade...

É com simulada destreza que me movo através das horas. Dentre blocos de instantes desconexos retiro o mal argumento que sustenta meus passos. Incoerente é a minha forma de agir: lógica incerta encoberta pelo puro reflexo daquilo que me rodeia e é firme. Na dureza da sucessão de fatos encadeados, algo que desmente a mais livre crença infundada - aspirações se desmancham no que é cômodo, óbvio e brutalmente incisivo no homem.
Multiplicidade de incoerências maleáveis – e o que é humano sobrevive ao nó no estômago, acreditando que posso ser muitos e, ainda assim, individual em meus sonhos. Inconstância disfarçável que não se deixa espreitar: assumo muitas caras, mesmo que não sabendo mentir – tão fácil mentir quando todos aceitam a mentira, sem nervos!
No entanto, sabe-se. Eu não sou um deles. Não são roupas, não são amabilidades, técnicas, habilidades, falsas destrezas, forçosas virtudes: nada, a não ser um pacto, é capaz de omitir a velada distinção. Todo o resto é cinismo. Não tenho suas caras limpas, suas feições lineares, suas certezas futuras, sua odiada estabilidade. Por que não gritam? Serão incapazes de chorar ao menos pela única e incontornável certeza de ser? Serão também incapazes de rir um riso embriagadamente insano, patético e excessivo? Tão práticos na vida, tão retos, sem nenhuma curva, com seus problemas normais, seus defeitos normais, suas anormalidades – até essas, mesmo – tão normais?
Porque eu choro. Não aquele choro de portas cerradas, lenço na mão, lágrima enxuta com o canto do dedo: eu choro um choro público, descontrolado, que constrange o pudor subitamente em um ônibus, em uma esquina, e recusa-se a trancar em casa o seu desespero, e se o faz é com ódio, amargura e encontrando frestas por onde fugir para consolidar-se no que não se esconde. É também um choro forte, que arde as pálpebras, enfraquece os músculos e alivia a mente em doce cansaço - pretendida exaustão que inibe pensamentos, torna a expressão quieta, desabafada. E eu também rio: mas não o riso de canto de boca, de gargalhada bonita e sonora, de alegria sociável e plástica. É o riso que desfigura, lacrimeja os olhos, coloca sangue na testa e salta as veias do pescoço. Uma alegria mal-educada, exagerada e extrema.
É por tal instintiva natureza, espontânea e avulsa, que me sinto, à parte qualquer inegável privilégio, um indivíduo de pé crestado no barro, olhos baixos, certezas curvas, vaidades escassas, desejos simplórios e ásperos impulsos. No entanto sei que sou fraco – frágil, protegido, pouco sofrido e bastante agraciado pelas circunstâncias que me tornam parte de uma injusta exceção. Assim, no cerne desta contradição eu encontro, resignado, o meu papel. E quantas concessões! E quanta inibida impaciência! Mas como me faz falta, ainda, esta dureza, esta simplicidade, este pouco querer - pois sou reto e de aspecto sóbrio e, no entanto, me rasgo por dentro em contradições que são o mais puro fruto da inadequação.
Um dia houve algo no trabalho. Foi logo no início, e mencione-se que, ali, em todos os dias ganha-se um pouco em cinismo, hábito e pragmatismo. Mas houve um dia no trabalho em que uma senhora muito idosa se aproximou, cabelos armados em negra arapuca, corpo magro, feições murchas, criança puxada por um braço e a outra mão livre escondendo, suspensa, a boca balbuciante. Aproximou-se e a mim se dirigiu: falou de modo muito canhestro, inaudível, pequeno, inferior. Falou de modo tão incerto que parecia querer livrar-se de palavras que eram um fardo e, no entanto, mal as pronunciava. Inclinei-me o quanto pude, subitamente tocado pelo despertar da imediata cumplicidade que atinge, vez por outra, dois seres humanos que se compreendem, e foi com tamanho esforço e apaixonada veneração que, calmo e passivo, decifrei cada fonema proferido. E era tanta vergonha, tanta inferioridade naquela mão que segurava cada palavra, que seu corpo tremia, seus olhos se abriam em susto e seu porte ficava menor, à medida que era obrigada a repetir-me sua intenção, tão logo eu demonstrava minha absoluta incapacidade em compreende-la.
Poderia ter-lhe pedido que descobrisse os lábios, falasse mais alto, ou gentilmente tê-la induzido a aumentar seu tom de voz de modo a ser um pouco mais clara. Mas foi tal minha comoção com aquela simplicidade, aquele envergonhado e ingênuo pudor... Mais que isso: foi tamanha a minha vergonha por ter sido visto de modo superior, e maior ainda minha decepção por ver-me irremediavelmente distante e grandioso - embora tantas tivessem sido as vezes em que também me apavorei com a força das palavras e com o rosto indagante de quem me ouvia, e tantas as vezes também em que levei a mão à boca e repeti este mesmo gesto cabreiro no colégio, nas ruas e na minha vida, num irremediável constrangimento e timidez... Foi tal a minha comoção, enfim, que curvei-me o quanto pude, com total respeito e amarelo sorriso no rosto, para com esforço ouvir-lhe a pergunta.
Do alto da minha função, na minha postura forçadamente longilínea - incremento para a boa aparência que me exigem diariamente no trabalho, nas ruas, nos livros, nos dias, e que sei que não posso dar – vi uma parte daquilo a que aspiro tão distante! Um traço de simplicidade dos meus pais, da minha cidade, dos meus valores, tão irremediavelmente distantes, afogados em ambições, convívios, circunstâncias e pretensões diversas...
Senti os olhos úmidos, e uma vez mais quis pensar por que parecia que só eu era tão incapaz de resguardar-me à pública exposição, ao mostrar meus olhos brilhando pela mágoa, a tristeza e os esperançosos ideais que se frustraram na mediocridade de certas horas.
Quanto à senhora? Queria saber – mãos trêmulas - o que precisava fazer para conseguir um empréstimo de “mil real”. Disse-lhe que pegasse uma fichinha. Que mais poderia dizer? Tantas vezes eu também segurei com os dedos cada palavra, por medo, vergonha e sentimento de inferioridade diante daqueles que me olhavam! Mas ali era somente eu, minha gravata, minha distância... E ela que se dirigia à máquina, olhando-me com inestimável gratidão. Creio até que me chamou de meu filho, no seu modo muito verdadeiro de dizer obrigado.

2 comentários:

Da Mata disse...

"Pela noite de barulhos espaçados,
Neste silêncio que me livra do momento
E acentua a fraqueza do meu ser fatigadíssimo,
Eu me aproximo de mim mesmo
No espanto ignaro com que a gente se chega pra morte.

Meu espírito ringe cruzado por dores sem nexo,
Numa dor unida, tão violentamente física,
Que me sinto feito um joelho que dobrasse."
[Mário de Andrade - Pela noite de barulhos espaçados]

São em alguns momentos como esse, a que me levaram seu texto, que me sinto um joelho.
A próximidade que tenho com o seu relato me trouxe lágrimas... :estou oca!
um abraço

Anônimo disse...

Felipe Mendonça:

É nessas horas que dá vontade de tirar a gravata, soltar um palavrão bem alto (mas que só você escute), sair sem dar satisfação a ninguém e chorar andando na rua, nem aí pra quem passa, pra quem conjectura a respeito do motivo para as lágrimas. Chorar e, depois, sorrir. Sorrir e apertar a mão de quem passa; sorrir e deitar no chão, embaixo de uma árvore... E, depois disso tudo, mandar tudo para a puta que pariu e fazer alguma atividade na qual não se tenha que usar disfarce, na qual você não seja visto como uma figura superior (ver-se superior é horrível... odeio quando me chamam de senhor!). Simplicidade é tudo! Teu post me lembrou uma cena de Albergue Espanhol. Preciso dizer qual?