Na véspera deste primeiro de maio, milhares de trabalhadores se organizaram em distintos focos que convergiram, lá pelas 14h, para o cruzamento entre Avenida Belgrano e 9 de Julio. Lá estava armado um palco que trazia, em seu centro, a imagem do casal Perón e que foi o centro da manifestação que antecedeu o feriado. Daqui da Independencia vi crescer um desses aglomerados, enquanto a avenida ficava repleta de ônibus que traziam pessoas provenientes de muitas províncias próximas à capital. Com seus tambores, faixas e cartazes atravessaram San Telmo, enchendo o bairro com um som que tem se mostrado recorrente no cotidiano da cidade.
Antes, no dia 24 de março, eu já havia sido pego de surpresa pelo gigantesco ato público que marca também essa data. Chegando inadvertido a tal feriado (cuja existência eu até então sequer conhecia e que não encontra correspondente no calendário brasileiro), descobri a data ao mesmo tempo em que me deparei, na Avenida de Mayo, com a extensão inabarcável de grupos, movimentos, partidos políticos e sindicatos que marchavam organizados em direção à Plaza de Mayo. Tal feriado, descobri enfim, marca a instauração do regime ditatorial na Argentina e foi instituído para lembrar as atrocidades cometidas, além de homenagear os cerca de trinta mil detenidos-desaparecidos vítimas do regime. Assim, a grande manifestação encontra seu sentido pregnante na necessidade de, ainda hoje, exigir justiça na punição dos responsáveis pelos crimes, além de reavivar a reflexão sobre os mecanismos pelos quais forças repressivas, respaldadas por aparatos institucionais, chegam a assumir oficialmente o controle de um país. Não faltam então, nos diversos pronunciamentos que marcam o ato, referências a circunstâncias que tornam presente a violência institucional, a coação política e a pressão econômica que incide sobre os sujeitos nas múltiplas esferas de suas vidas.
Impressionante, nesse sentido, é a centralidade que assumem as imagens dos desaparecidos no desdobramento desse ato. Empunhadas pelos manifestantes, elas remetem, em sua constância, a uma crença na fotografia como representação, como reafirmação de uma presença que se faz vibrante na memória nacional. Estampados em faixas, roupas e cartazes, alçados ao topo de estandartes, reproduzidos como emblemas que condensam todas as reivindicações, os retratos trazem à tona uma falta que transborda o debate institucional para evocar a revolta motivada por um dano que nenhuma medida é capaz de reparar: a dor da perda, a saudade inconsolável que assola os familiares e amigos das vítimas.
A centralidade destas imagens está assinalada sobretudo pela faixa quilométrica que se estende ao longo do percurso e é conduzida pelos manifestantes até o centro da praça. À frente vão as madres da Plaza de Mayo, figuras que historicamente vincularam sua atuação a essa perda e à reivindicação de justiça que os crimes que a geraram suscitam. No entanto, o que se mostrou mais impactante – ao menos para mim – foi a multiplicação de silhuetas que, acompanhadas por inscrições que indicam nomes e funções profissionais, reclamam essa falta. Indicação que atua duplamente: elidindo as feições e identidades que a fotografia não pode substituir e aludindo a uma iconografia criminal pela reminiscência de corpos que foram suprimidos pela ação das forças oficiais.
Ao contrário do que eu poderia supor, porém, o desfile de segmentos e tendências que, deslocando-se em direção à praça, preencheram-na em toda sua amplitude, não se deu de forma grave ou vociferante. Nos rostos, danças, músicas e canções entoadas havia uma alegria, uma energia que se desprendia, enchendo de vivacidade esse tipo de acontecimento político que, em outros contextos, aparece por vezes em uma forma “esvaziada”. A manifestação de 24 de março é, afinal, uma grande ocasião em que convergem, de um modo que me pareceu à primeira vista bastante estranho, a lembrança de uma experiência social traumática e a alegria de uma celebração coletiva. O que se celebra – pensei depois como alguém que entra em contato com essa faceta da vida pública argentina pela primeira vez – é a capacidade de aglutinar-se ainda em torno de uma grande causa política.
Seguem algumas fotos feitas por mim no dia da manifestação, as primeiras que consigo postar por aqui. Infelizmente, elas não chegam nem perto de dar uma idéia da extensão do acontecimento que tomou conta do centro da cidade.
Día Nacional de la Memoria por la Verdad y la Justicia
24-03-2009
sábado, maio 02, 2009
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