Em uma coisa, pelo menos, eu concordei com o Banco do Brasil: seu marketing de fim de ano, que está construído sobre a idéia de que “a vida é feita de pequenas contagens regressivas”. Aliás, não deixa de ser uma ironia que eu tenha dado o ar da graça por estes dias trajando uma camiseta com estes dizeres oficiais, no meu trabalho. A minha contagem começou oficialmente, hoje, e vai de 30 a 1. Depois disso, para o bem ou para o mal, muita coisa muda em minha vida, e é com muito otimismo que eu penso que, talvez, só por essa possibilidade que nos é dada de mudar o que está colocado em nosso entorno - as nossas condições de vida - precisamos celebrar a vida. A possibilidade da mudança, da libertação, do novo; o medo e a felicidade de descobrir o nosso poder de fazer grandes ou pequenas destruições, de saber que nossos gestos surtem efeitos mais ou menos perceptíveis e que, exatamente por isso, somos tão responsáveis por cada um deles.
Há bastante tempo eu deixei de rezar, mas há uma prece que eu nunca abandono: uma prece leiga, laica e torta que pede, a cada nova reviravolta, que elas não cessem nunca, que eu jamais encontre apenas o previsível, o esperado, a temível e sedutora “estabilidade”. E sei que há um preço alto a pagar por essa possibilidade das rupturas e recomeços: pois toda época tem algo de bom e de ruim, e não há nenhuma garantia de que o bem permaneça e que somente o indesejável se afaste. Podemos mesmo, vez por outra, perceber o tempo funcionando como uma peneira ao contrário, detendo o que nos fere e levando furtivamente o que nos é precioso. Mas faz parte do risco e da graça, para quem sabe jogar: pôr à prova o que há de bom, esperando o que está por vir e apostando no que é diferente, acreditando-o melhor. É também um ato de confiança e generosidade, este: renegar o indivíduo que somos hoje acreditando na nossa capacidade de sermos melhores; que o mundo nos trará novos presentes e não nos deixará de mãos vazias.
Engraçado mesmo, nisso tudo, é também perceber como tudo parece mais entusiasmante, fantástico e cheio de promessas quando imaginado em pleno desespero. Sim, pois os louros da vitória nunca são tão perceptíveis e gritantes quanto em nossos planos e fantasias: quando conseguimos mal podemos acreditar, e é tudo tão leve e sutil que, com um pouco menos de atenção e cuidado, quase podemos deixar passar em branco e esquecer o quanto nos custou e o quanto é importante. O medo e o condicionamento a que nos submetemos são tantos que só se pode explicar a vertigem e a cautela com que celebramos esta energia vital que surge das mudanças por meio das metáforas, como àquela a que recorreu Mari, ao lembrar dos bois que, mesmo depois de libertos, continuam andando em círculos ao redor do moinho que faziam movimentar, no filme Abril despedaçado. Estão soltos, mas só sabem andar em círculos, e lhes custa olhar para os lados e imaginar que podem fazer diferente, que só lhes basta mudar o passo.
A adrenalina de tomar uma decisão importante e saber que a responsabilidade é toda sua é uma espécie de “estresse bom”, como disse um amigo: a preocupação com as conseqüências que sobrevém a uma escolha definitiva; o friozinho e a vertigem que sentimos quando abrimos mão de algo importante e precisamos fazer valer a pena a escolha; e, acima de tudo, o imperativo pela criação de novas alternativas que façam frente às que irremediavelmente deixamos para trás.
Sim, não há dúvida: é o ano novo bem ali, logo depois do carnaval, mas desde já e sempre, em cada dia.