sábado, dezembro 30, 2006
quinta-feira, dezembro 21, 2006
catarses coletivas, singelas cortesias globais
Em um certo dia, há pouco mais de dois anos, quem passasse pela estreita Rua do Lazer - lugar que agrega diversos estandes e barracas de alimentação e amplamente freqüentado pelos universitários que circulam pelos prédios e instalações da Universidade Católica de Pernambuco - testemunharia um inusitado evento certamente vivenciado em diversas outras partes da cidade e do país, tanto nos espaços públicos quanto no aconchego de milhões de lares brasileiros. Um público eufórico e radiante, digno dos grandes espetáculos desportivos de Copa do Mundo, se acotovelava, aglomerado, em frente aos televisores dos pequenos estabelecimentos dispostos pela rua, assistindo ao que seria o mais recente mega-acontecimento da grande mídia brasileira: um acerto de contas regado a muita porrada entre ninguém menos que Laura e Maria Clara, personagens arquetípicas (ou seriam estereotípicas?) que ocupavam os postos de “vilã” e “mocinha” na pedante novela Celebridade.
Aos gritos, urros e outras interjeições de euforia e espanto, os passantes disputavam, ávidos, cada centímetro quadrado em frente aos aparelhos, diante dos quais apenas vez por outra olhavam para os lados, mas sempre sorrindo, fazendo comentários, vibrando, quiçá desfiando apostas e palpites. Em uma experiência estranhamente coletiva, por meio da qual compartilhavam problematicamente seus desejos de superioridade e suas noções moralistas do bem e do mal, os presentes explicitavam seus códigos duvidosos de justiça em uma diferente roupagem, amparada em uma nova versão das convenções maniqueístas das narrativas nacionais, dessa vez assumindo alegremente a convicção de que os bonzinhos tinham mesmo era que sentar a porrada nas maléficas criaturas vilãs que habitam o caricatural reino do Projac.
Muito distante do ultrapassado conceito da mocinha ingênua e desafortunada que sofre quieta até o fim, a protagonista pop, fashion e umbiguista Maria Clara Diniz - do alto do poder já sugerido pelo seu ostensivo duplo-nome-próprio-e-sobrenome - mostra as suas garras e, para delírio do público, parte para o inusitado acerto de contas – por algum motivo obscuro do qual não cheguei a tomar conhecimento. Nesse encontro meticulosamente arquitetado pelos operários-padrão do mundo fantástico da Rede Globo – estes que, juntos, ajudam a incutir no imaginário popular a noção de um cotidiano delirante regado a praias, Leblon, pequenos luxos, grandes intrigas e uma inacreditavelmente pequena dose de trabalho e responsabilidade – não havia espaço para defesa, tampouco para uma disputa equilibrada: a atitude revanchista e descaradamente moralista de punir a diabólica personagem de Cláudia Abreu implicava na imobilização do alvo, na sucessão vertiginosa de golpes e, por fim, na demonstração ostensiva de poder que se caracterizaria como clímax da catarse coletiva, na qual nos é apresentada a imagem da cambaleante e surrada vilã, realçada com todas as cores fortes que uma violência selvagem e punitiva desenha no rosto de suas vítimas. Cláudia Abreu, de olho roxo e boca rasgada, sai de cena com a sensação de mais um dia cumprido.
Como no universo de valores e sentidos mercadologicamente legitimados tudo o que dá certo é reproduzido à exaustão, o pega-pra-capar novelístico que bateu recordes de audiência deu origem a um sem-número de acertos de contas produzidos em série e cada vez mais alimentados pela máquina auto-referente de programas televisivos, noticiários e impressos da indústria do fútil, tão próspera em nossas terras. Esta semana, eu estava no trânsito quando o rádio noticiou mais uma sessão de espancamento em horário nobre, cortesia do mestre dos barracos globais Manoel Carlos. Em breve, o locutor dizia, o mosca-morta Alex iria esbofetear a desumana – no sentido mais ridículo do termo – personagem de Lília Cabral. Assim, o momento-porrada que foi sempre ansiosamente aguardado e desfrutado por boa parte do público global se transformou em elemento obrigatório das novelas, repetido ad infinitum a cada nova produção. Nada disso chega a ser novo, de fato: a baixaria e a valorização do olho por olho são lugares-comuns em certos discursos midiáticos. A novidade é que, dado o seu grau de eficácia, a coisa se alastrou por todos os núcleos das novelas, de modo que até mesmo os coadjuvantes agora têm direito ao seu merecido duelo.
Cabem aqui duas questões. Em primeiro lugar, nos resta saber até quando os espectadores irão ver alguma graça nestes momentos-catarse em que empregados ofendidos, populações massacradas, cornos indignados e outros seres com motivos para revolta se sentirão verdadeiramente vingados ao testemunhar a “surra aos malvados” encenada em seus televisores. A segunda pergunta, mais sombria: o que virá depois, para saciar este senso de justiça que leva o acerto de contas para a esfera do privado e alimenta discursos fundamentalistas sobre bons e maus, definindo o tratamento destinado a estes últimos por cada indivíduo, em seu moralismo duvidoso que conecta justiça e desforra?
A lógica da repetição, fundamentada na reprodução das fórmulas de sucesso e potencializada pelas políticas de baixo risco que permeiam as tentativas no mercado televisivo de agradar ao seu público consumidor, transformam os eventos espetacularizados do horário nobre em uma sucessão de clichês fabricados e “grandes acontecimentos” redundantes. Estes continuam a render até que, por sua própria obviedade e natureza descartável, acabam por cansar até o mais passivo dos espectadores, sempre sedento por novas remessas de catarses coletivas. É assim que a fábrica global de compensações cria, recria e veicula suas fórmulas exaustivas - e, não raras vezes, sexistas -, desafiando a indulgente cumplicidade de seus fiéis interlocutores e transformando tudo em mercadorias de emoção barata: até uma “boa” surra.